Por Flávio Kiefer
Arquiteto, docente na PUCRS
O que a foto acima, de autoria de Fábio Del Re, nos diz? Ela mostra uma colina formada por prédios. Essa colina nasce ao pé de uma chaminé de 117 metros de altura e vai ganhando altitude na direção Leste até se nivelar com essa chaminé, sem ultrapassá-la. Essa imagem torna a cidade de Porto Alegre inconfundível para quem a conhece. Funciona como uma marca.
Nem sempre foi assim. Essa colina já teve configurações bem mais modestas, mais baixas. O espigão que divide a cidade sobe devagar pela Rua Duque de Caxias até alcançar os 37 metros de altura. A partir desse ponto, em frente ao Solar dos Câmara, se mantém mais ou menos nivelado até voltar a subir outra vez até a hidráulica do Moinhos de Vento. O que se vê, hoje, é o resultado de uma multiplicidade de regras que o constituíram. Um skyline que já foi marcado pelas torres de suas igrejas e que verticalizou-se progressivamente ao longo da primeira metade do século 20.
O cume dessa ascensão são os 32 pavimentos do edifício Santa Cruz, de 1958, na Rua dos Andradas. De lá para cá, houve uma inversão, e as leis dificultaram cada vez mais os edifícios de grande altura. Para quem anda à altura das calçadas, o quadro é caótico, pura expressão do inacabado. São ruas desalinhadas, alturas desencontradas, galerias interrompidas, empenas cegas em profusão – aquelas paredes sem janelas coladas à divisa esperando o vizinho que não vem. De longe, nos mostra a foto, até que há harmonia.
A construção da paisagem urbana é lenta, feita em décadas. Para que tenha qualidade, é preciso que tenha regras que se prolonguem no tempo. Até a aparente liberdade de construir de Manhattan tem suas normas. Os prédios são pensados para que cresçam como árvores em uma floresta. Lá não existem fachadas cegas – ou medianeiras, como o filme argentino as tornou famosas. Já a maioria das cidades europeias exerce, há séculos, controle volumétrico rígido de seus edifícios. As alterações são pontuais e controladas para que não haja rompimentos na paisagem ou, se for inevitável, que se faça um novo desenho que conviva harmonicamente com o antigo. O resultado é admirado pela maioria dos brasileiros que vão até lá, e mesmo pelos que pedem liberalidade para construir aqui.
O último Plano Diretor, de 1999, foi tão radical em relação ao anterior que trazia uma ressalva: deveriam ser identificadas áreas de interesse cultural que seriam regradas por índices mais adequados à sua morfologia. Participei do grupo que delimitou áreas e parâmetros urbanísticos que seriam levados à Câmara de Vereadores. A ideia era mitigar a ruptura da paisagem em locais que foram constituídos sob as normas anteriores e que tinham se constituído em lugares com valor cultural, histórico e ambiental de qualidade. A incompreensão e a agressividade com que esse estudo foi recebido por setores da sociedade foi brutal, mas não é o que eu quero discutir aqui. O que quero lembrar, é que, nos debates sobre o Centro Histórico, defendi que a manutenção da limitação da altura em no máximo 33 metros não era uma boa política. Entendia que não deveria haver índices numéricos à priori, que se deveria dar total liberdade para que cada projeto de arquitetura se adaptasse da melhor forma ao contexto em troca de “gentilezas urbanas” de interesse coletivo dos cidadãos. Construir um prédio colado ao gigantesco Ed. Coliseu, na praça Osvaldo Cruz, que tem uma empena cega sem graça e visível de muito longe, por exemplo, seria muito bem-vindo. O importante seria a visão do conjunto, sempre buscando uma forma de compor harmonicamente com a imagem da foto.
É nesse sentido que a ideia de um projeto específico para o Centro Histórico (entregue pelo prefeito à Camara no fim de setembro) pode ser vista como alvissareira e mesmo necessária. Entretanto, o fato de ela ter sido anunciada com ênfase na liberação das alturas máximas das edificações preocupa. O céu é o limite. Será? Vamos permitir que sejam escolhidos terrenos propícios a espigões autorreferentes sem preocupação em costurar o quarteirão? Deixar que um paliteiro desconexo quebre a paisagem da foto? Liberar as alturas não pode ser o indutor do projeto. Isso vai levar a uma nova batalha na qual a cidade sairá perdendo. O planejamento deveria desenhar, quadra a quadra, a melhor solução volumétrica que traga qualidade ambiental, paisagística e cultural para o Centro. Quem sabe através de concursos públicos por setores ou mesmo quarteirões?
Liberar as alturas não pode ser o indutor do projeto. Isso vai levar a uma nova batalha na qual a cidade sairá perdendo. O planejamento deveria desenhar, quadra a quadra, a melhor solução volumétrica que traga qualidade ambiental, paisagística e cultural para o Centro.
Voltando à foto. Os 70 anos de um certo desatino sobre como regular a cidade nos legou, por sorte, uma harmonia visual para o skyline do centro da cidade. Quem olha do Sul percebe uma massa de edifícios numa altura próxima dos cem metros acima do Guaíba que vai declinando em direção a Oeste até deixar solta e soberana a chaminé do Gasômetro. Isso não quer dizer que eu defenda a liberação até os cem metros de altura. Meu entendimento é que, sim, essa altura é admissível sob condição de atender quesitos de qualificação da paisagem da região. Que cada edificação seja milimetricamente projetada como uma costura entre seus vizinhos, que, sabemos, um pode ser uma casa ou um prédio de 15 pavimentos. Que o edifício alcance e cubra empenas cegas, que faça a transição entre fachadas vizinhas, que crie largos, galerias, praças internas aos quarteirões, enfim, dê fruição estética e funcional de alta qualidade. A exemplo do que nós, arquitetos, fazemos com prédios históricos, trazendo-os a contemporaneidade sem que percam sua historicidade, podemos chamar esse exercício de rearquitetura urbana.
Pode ser que muitas das soluções volumétricas não despertem interesse imediato das construtoras, mas, como foi dito, a construção da cidade é lenta. Não tem importância. Desta vez, saberemos que o tempo estará a nosso favor. Claro, desde que o desenho proposto não venha a ser alterado dali a um par de anos.