Por Márcio Carvalho
Arquiteto
Um balé colorido de céu e nuvens refletido na dança das águas. Uns chamam de lago, outros de rio, laguna ou estuário. O fato é que ele sempre este lá, desde que a cidade nasceu. Primeiro Porto dos Casais, depois Porto Alegre. O porto dos nossos antepassados, o berço das novas gerações.
Essas águas carregam sonhos, promessas, memórias. Águas que são também ruas de uma cidade que não apenas está de frente para o rio, mas que é feita de rio.
Essas águas têm importância ambiental, econômica e histórico-cultural para a região. Desde sua fundação, no século 18, é o principal manancial de abastecimento hídrico desse conglomerado urbano. A enchente de 1941 deixou durante 22 dias – entre os meses de abril e maio – o centro da cidade debaixo d’agua, pois as águas alcançaram 4m76cm (sendo que o normal é 1m). Barcos se tornaram um meio de transporte da população, e muitos prejuízos foram causados. Ergueu-se então o Muro da Mauá (ao lado do Cais Mauá), junto a um sistema de contenção e drenagem.
Da mesma forma a história mostra o quanto a cidade avançou sobre o Guaíba com o passar das décadas. De aterro em aterro, Porto Alegre foi crescendo e se apropriando da enseada, triplicando assim a área da península. Prédios importantes como o do Mercado Público, o da antiga sede dos Correios e Telégrafos (onde hoje é o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o Margs), o do Paço Municipal, o da Usina do Gasômetro e o da Casa de Cultura Mario Quintana foram construídos sobre áreas aterradas.
Uma Porto Alegre que também já foi industrial e que se utilizou do rio para desaguar toda a sua produção.
Até a metade do século 20, o Guaíba era um destino popular de banhistas, esportistas e turistas – principalmente entre 1940 e 1970. Uma época em que não era necessário pegar a estrada para ir até a praia. Na Zona Sul, Ipanema era lotada de pessoas de todas as idades. Lá, crianças brincavam na areia grossa. Cenas clássicas que podem ser encontradas nos antigos álbuns de família.
Porém, sérios problemas relacionados à segurança, ao abandono e à degradação tornaram a área um problema para a cidade. E a capital dos gaúchos virou as costas para o rio, crescendo para outros lados.
A reconexão veio com o passar dos anos, quando a cidade ganhou a Avenida Edvaldo Pereira Paiva, conhecida como Beira-rio, que contorna a margem do Guaíba – da Usina do Gasômetro até o antigo Estaleiro Só. Com ela, o pedalar, o caminhar, o correr sentindo a brisa do vento ao lado das águas que banham a cidade passou a ser uma cena constante. E, novamente, aos poucos, Porto Alegre começou a se voltar para o Guaíba.
Mas as pazes entre o rio e os cidadãos se deu mesmo em 2018, com a inauguração da Orla Moacyr Scliar, que redefiniu definitivamente a relação que os porto-alegrenses e os turistas têm com Guaíba. Uma gentileza urbana, devolvendo à cidade um dos seus mais preciosos patrimônios naturais, a orla.
Após a revitalização desse espaço, com projeto do Jaime Lerner Arquitetos Associados, conectaram-se as pessoas, a cultura, a história e a natureza. Inúmeras iniciativas surgiram a partir daí, consolidando cada vez mais esse como um novo destino. O quanto a cidade cresceu para esses lados, quanta vida ganhou. Porto Alegre, com o Guaíba, tem mais poesia.
Ponto de encontro de todas as tribos, que reúne, agrega sem distinção. Nessas margens, nas quais cada ponto é um porto para atracarmos conversas, brincadeiras, rodas de chimarrão, exercícios ou simplesmente contemplarmos encantados o último raio de sol.
Sentado na orla, em silêncio, observo essa imensidão. Inflo meu peito de orgulho por essa cidade que acolheu este santa-mariense. Sempre tive uma esperança bairrista que esse dia chegasse e que o meu filho, como os outros, pudesse apreciar e entender que, sim, somos uma cidade feita de rio. Esse rio que é a nossa gênese, o nosso território e a nossa utopia.