O padre Remi reza seis noites de missa no santuário de arquitetura neogótica na zona norte de Porto Alegre. Do outro lado da cidade, a mãe Andreia compra flores, cozinha canjica e decora o terreiro na Restinga. Os preparativos para o dia 2 de fevereiro têm doses parecidas de ansiedade e fé, mas não são exatamente para a mesma divindade.
Nossa Senhora dos Navegantes e Iemanjá são mães, protetoras das águas e celebradas no mesmo dia no Rio Grande do Sul. Se não fosse a pandemia de coronavírus, católicos e praticantes de religiões afro-brasileiras se encontrariam em uma grande procissão na terça-feira, que reuniu até 200 mil pessoas em anos anteriores.
Tem uma expressão para explicar essa dupla identidade divina: sincretismo religioso. E qualquer discussão sobre o tema, destaca o professor Emerson Giumbelli, precisa voltar séculos na história. Religiões de matriz africana chegaram à América em uma situação na qual os praticantes haviam sido escravizados, e já havia por aqui uma religião oficial.
– A sobrevivência de crenças e práticas de origem africana dependia necessariamente da convivência com os símbolos da religião dominante, o catolicismo. Assim foi durante quase quatro séculos e, mesmo com as mudanças introduzidas pela República, a repressão, a perseguição e o preconceito não deixaram de acontecer – afirma o professor do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRGS e integrante do Núcleo de Estudos da Religião da universidade.
Os escravos não abandonaram a crença que trouxeram da África, mas deram um jeito de disfarçá-la dentro da liturgia cristã. Eles buscaram comparar as qualidades dos seus orixás com os santos católicos, para enganar seus senhores e cultivar a fé.
– Eles colocavam uma pedra com seu orixá assentado, chamada ocutá, atrás da imagem dos santos, para não apanhar – conta o presidente da Federação Afro-Umbandista Espiritualista do Rio Grande do Sul (Fauers), Everton Alfonsin.
É em razão desse mesmo sincretismo religioso que São Jorge é tão popular em religiões afro-brasileiras: ele é relacionado a Ogum, um orixá guerreiro. O mesmo ocorre com Santo Antônio (equivale a Bará Exu), Xangô (a São Jerônimo) e outros – veja a lista abaixo.
Várias faces
Algumas vezes, o mesmo orixá é vinculado a mais de um santo. A própria Iemanjá remete a Nossa Senhora da Glória para alguns praticantes.
E ela também passa longe de ter um nome apenas ou imagem unânime no território nacional. Iemanjá (ou Janaína, Rainha do Mar, Princesa de Aiocá, Inaê…) é uma das das divindades mais diversas do panteão dos orixás.
Aqui no Sul, a aparência mais popular é de uma moça branca, de cabelos compridos e coroa na cabeça, com um vestido azul delineando os seios e os quadris. Ela é mais utilizada na umbanda, relata Everton Alfonsin, uma religião criada em 1908. Já na matriz africana, há terreiros que possuem uma escultura negra, algumas vezes com os olhos cobertos, porque acredita-se que os homens não são dignos de olhar nos olhos dos seus orixás.
Iniciada no Dia de Iemanjá na nação Jeje ijexá, a administradora Grazieli Scot, 38 anos, tem uma versão de Iemanjá negra na sala de casa, na Restinga. Com um vestido armado e um turbante azul claro na cabeça, ela abraça uma criança também negra (explica que representa Xangô). Já a mãe de Grazi na religião, Andreia Silvana Pereira da Silva, 46 anos, é mais tradicional.
A mãe Andreia de Iemanjá fará canjica branca, vai comprar cocada, melancia, vai ofertar perfumes, flores e pérolas a uma imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, bem como seus antepassados faziam.
– Eu sou do tempo antigo. A gente não pode esquecer que a nossa religião é de matriz africana, porém, foi misturada. Quem cultuava Iemanjá aqui eram os escravos, na imagem de Nossa Senhora.
O Rio Grande do Sul é o Estado de maior adesão a religiões afro-brasileiras do país, segundo Censo de 2010. A Fauers acredita que hoje já passam de 80 mil os terreiros em solo gaúcho. Mas a geração de Grazi e da mãe Andreia é uma das primeiras com liberdade para cultuar seus orixás sem o risco de “alguém invadir sua casa dizendo o que pode e o que não pode que fazer”.
– Na casa da minha avó era assim. Chegava a vir polícia, não podia praticar. E se era pego com oferenda na rua, era capaz de ser preso – lembra mãe Andreia, que viu a família sofrendo essa perseguição na infância. – Hoje ainda existe preconceito, mas muito menos. Você não podia nem falar que era de religião afro até pouco tempo atrás.
Outras relações estabelecidas pelo sincretismo religioso*
- Oxalá: Jesus Cristo, Nosso Senhor do Bonfim. O grande Pai da Umbanda. Senhor da compaixão, do perdão, da sapiência e da fé.
- Xangô: São Jerônimo, São Pedro (RJ), São João. Xangô é o deus do trovão e da justiça.
- Ogum: São Sebastião (BA), São Jorge (RJ/RS). Orixá do ferro, fogo e tecnologia. Ogum é o orixá guerreiro capaz de abrir caminhos na vida e quebrar nossas demandas
- Oxossi: São Sebastião (RJ/RS), São Jorge (BA). Orixá da caça e da fartura. Senhor das matas, da verdade e do conhecimento. O grande caçador de almas perdidas, grande curador e grande doutrinador.
- Obaluayê: São Lázaro, São Francisco (BA). Senhor da cura, da evolução e da passagem.
- Omulu: São Roque, São Lázaro, São Bento. Senhor do fim, Senhor da paralisação.
- Oxumaré: São Bartolomeu. Orixá da chuva e do arco-íris, o Dono das Cobras. Dilui e renova os sentimentos doentios e viciados.
- Ibeji: São Cosme e São Damião. Pureza, leveza, alegria e doçura.
- Yansã: Santa Bárbara. Orixá guerreira, deusa dos raios, dos ventos e das tempestades. Liberdade, do movimento e paixão pela vida.
- Oxum: Nossa Senhora da Conceição (RJ/RS), Nossa Senhora das Candeias (BA), Nossa Senhora da Conceição Aparecida (RS). Orixá do amor puro e verdadeiro, orixá da alegria e da união. Senhora da águas doces e das cachoeiras.
- Nanã: Sant’Ana. Senhora das águas paradas, do pântano, do barro e da sabedoria.
- Egunita: Santa Sara de Kali. Senhora do Fogo vivo e divino. Sua maior qualidade é a purificação.
- Obá: Santa Catarina, Santa Madalena. Obá é a orixá que aquieta o racional dos seres e esgota o conhecimento desvirtuado.
- Oyá: Joana D’arc. Orixá do Tempo, passado presente e futuro (tempo cronológico) e sua maior ação é no sentido religioso, onde ela atua como ordenadora do caos religioso.
- Bará Exu: Santo Antônio, São Bartolomeu, São Pedro (RS). Faz a guerra para trazer a paz. Atua sobre a dualidade do homem. Orixá guardião dos templos, encruzilhadas, passagens, casas, cidades e das pessoas, mensageiro divino dos oráculos.
Fonte: Fauers