O clima entre prefeitura e empresas de ônibus era árido quando, há cerca de quatro meses, o desembargador Ney Wiedemann Neto foi atrás do procurador-geral do município, Carlos Eduardo Silveira. Relatou que, diante da queda abrupta de passageiros imposta pela pandemia de coronavírus, as empresas de ônibus pretendiam buscar reparação financeira acionando o poder público por via judicial. Além disso, argumentavam que os prejuízos colocariam o serviço em xeque: caso se agravassem, poderiam comprometer o funcionamento do sistema, tirando os ônibus de circulação.
A sugestão do desembargador era tentar uma negociação até então inédita para resolver o conflito antes que ação fosse ajuizada. Ele sugeriu que prefeitura e empresas participassem de um processo de mediação no Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (Cejusc), muito atuante na esfera civil e especialmente efetivo na resolução de conflitos familiares — em razão da pandemia, o escopo dos atendimentos foi ampliado para atender a empresas e instituições públicas de forma virtual. Caso fosse bem sucedido, o acordo poderia trazer uma solução mais rápida e menos custosa para o impasse entre o Executivo e os transportadores, além de evitar a suspensão do serviço.
Poucas semanas depois, uma sala de videoconferência reunia mais de 30 pessoas, entre técnicos da Empresa Pública de Transporte e Circulação, procuradores do município, advogados e representantes das empresas de ônibus, além do prefeito Nelson Marchezan. Era o início de uma jornada que só chegaria ao fim na quinta-feira passada, depois de quase quatro meses de negociações.
— Foi um trabalho bem puxado porque é um assunto complexo, delicado. E as reuniões não foram amistosas — conta o secretário extraordinário de Mobilidade Urbana, Rodrigo Tortoriello.
Já nas primeiras conversas, os empresários tocaram em um ponto especialmente caro à gestão de Nelson Marchezan. Em meio à crise financeira agravada durante a pandemia, reivindicavam R$ 66 milhões para cobrir as perdas relativas ao período de distanciamento social. A proposta perturbou o chefe do executivo, que vetou à equipe envolvida nas negociações a possibilidade de o poder público liberar recursos às empresas sem receber nada em troca — nos bastidores, a avaliação do prefeito era de que os problemas do sistema desqualificavam as reivindicações dos empresários.
A questão financeira mostrou-se o principal impasse entre as partes ao longo das negociações. Enquanto a Associação dos Transportadores de Passageiros (ATP) não admitia reduzir o valor da indenização, a prefeitura se recusava a liberar qualquer recurso sem contrapartidas. Por diversas vezes, os ânimos se exaltaram e, em pelo menos cinco oportunidades, o Executivo ameaçou desistir do acordo.
Os custos financeiros e sociais de judicializar a questão, pontos destacados pela coordenadora do Cejusc Porto Alegre, Dulce Ana Gomes Oppitz, que acompanhou o caso junto com duas mediadoras, forçaram os dois lados a buscarem um meio termo. Além das 16 sessões virtuais de conciliação, pelo menos mais de uma dúzia de encontros — parte deles presenciais — serviram para discutir exaustivamente cada ponto da negociação.
A resolução começou a se desenhar há cerca de três semanas, quando os principais pontos do acordo foram estruturados em um documento e revisados em uma reunião no gabinete do prefeito, da qual participaram, além do chefe do Executivo, representantes da prefeitura e da ATP. O acordo foi assinado na quinta-feira (24), encerrando quase quatro meses de tratativas.
Oportunidade de mudança
Ao longo das tratativas, a prefeitura inverteu o jogo. Inicialmente acionada para liberar recursos às empresas, impôs uma série de medidas a serem adotadas para qualificar o serviço, como a ampliação dos pontos de venda de créditos e a concessão de descontos tarifários fora do horário de pico — o reajuste de 2020 foi descartado. Também conseguiu convencer os transportadores a abrirem mão de R$ 27 milhões referentes à remuneração do capital investido, ao lucro das empresas e à depreciação do sistema no período.
Por outro lado, o poder público aceitou mudar a forma de remuneração do serviço até o fim do ano. Em vez de receber por passageiro transportado, as empresas serão remuneradas por quilômetro rodado, e o Executivo se comprometeu a complementar eventuais diferenças entre custo e arrecadação. Para reduzir os prejuízos, as empresas também não precisarão mais contratar ou repor cobradores para cumprir a obrigatoriedade da tripulação mínima. Este dispositivo vale por um ano a partir da assinatura do acordo.
— Quando a gente entra numa mesa, tem a consciência de que algumas coisas vai ter que ceder. Não foi um acordo dos sonhos, mas foi o possível no atual momento econômico e social. Mas a gente queria que o custeio por quilômetro perdurasse por mais tempo. A gente vai brigar por isso — disse Antonio Augusto Lovatto, engenheiro da ATP que participou das tratativas.
Nos próximos meses, será realizado, ainda, um amplo estudo sobre o sistema, com o objetivo de embasar mudanças futuras na forma de contratação e avaliação do serviço.
Primeiro desse tipo no Rio Grande do Sul, o acordo foi considerado “histórico” pelo Tribunal de Justiça do Estado. Para a coordenadora do Cejusc, Dulce Ana Gomes Opptiz, a conciliação amplia o comprometimento dos envolvidos no cumprimento dos pontos pactuados, e tende a ser mais efetivo do que os processos judiciais.
— A gente foi perseverante porque, sem uma composição, poderia ter a interrupção do serviço e um reflexo social que não podíamos mensurar. Foi gratificante, pelo resultado e pela amplitude desse acordo — diz.
Os detalhes do acordo
- Até o final de 2020, as empresas precisarão oferecer 150 pontos de venda e recarga do cartão TRI.
- Os recursos repassados pela prefeitura serão revertidos, durante seis meses, em créditos para pessoas inscritas no Cadastro Único do governo federal. Os cartões só poderão ser utilizados fora do horário de pico.
- As empresas se comprometeram a não reajustar a tarifa em 2020 e a ofertar descontos tarifários fora do horário de pico.
- As concessionárias também não precisam mais contratar ou repor cobradores para cumprir a obrigatoriedade da tripulação mínima. Este dispositivo vale por um ano a partir da assinatura do acordo
*Colaborou Bibiana Dihl