Dezenas de agentes vestidos de preto circulam pela arborizada Academia da Polícia Civil, no bairro Agronomia, em Porto Alegre, enquanto o delegado Marco Antonio Duarte de Souza, 43 anos, desce as escadas. É uma presença imponente: com 1m90cm e cavanhaque longo, veste jaqueta e boné camuflados com o distintivo do Grupamento de Operações Especiais (GOE), departamento da instituição gaúcha do qual é diretor. Ele conduz repórter e fotógrafo de GaúchaZH até uma sala.
O movimento, conta o delegado, é consequência das mortes recentes de policiais civis e militares em serviço nos últimos meses no Estado. Foram quatro casos em um espaço de três semanas — o suficiente, segundo Souza, para apontar uma tendência. Na Polícia Civil, uma das providências da Secretaria da Segurança Pública foi fazer com que o GOE ministrasse cursos a todos agentes de campo. Único policial gaúcho vivo formado pela academia do FBI, Souza é um dos líderes naturais do projeto.
Mas não é sobre isso que ele pretende falar hoje. Sentado em frente ao banner da Polícia Civil que costuma servir de fundo para apreensões ou fotos de presos algemados, o delegado puxa um livro que estava embaixo do braço. Folheia o romance Carnarvon — Máscaras (Editora Alicanto, 2019) sorrindo como um pai orgulhoso apresentando o bebê.
— Até peço desculpas. Queria dar exemplares para vocês, mas fiquei sem até para mim. Vendemos todos no lançamento. Esse aqui eu peguei de um familiar só para fazer as fotos — conta agora o autor Marco A. D. Souza.
A assinatura mesclando nome e iniciais não é por acaso. Sugestão dos editores, o formato virou marca de autores como George R. R. Martin, de Game of Thrones, J. R. R. Tolkien, de O Senhor dos Anéis, ou J. K. Rowling, de Harry Potter, todos sagas com múltiplos livros de fantasia. A trama criada pelo delegado escritor ocorre em um imaginário semelhante. Se passa em um universo fictício em que Zardoz, um governante em busca de novos territórios, tenta sequestrar Addarkar Maddocks, um mestre-armeiro capaz de fundir aço com diamante e criar uma liga praticamente indestrutível. Em jogo, estão os territórios do continente de Tristan. Os colegas policiais arquearam as sobrancelhas, incrédulos.
— Pouca gente sabia desse meu hobby de escrever, só os mais próximos. Alguns riam quando me viam carregando o calhamaço pra lá e pra cá. Perguntavam: "E essa lista telefônica aqui?" — conta.
O calhamaço — que teve de ter a fonte reduzida para caber em 395 páginas — começou a ser escrito em 1999, quando Souza ainda tentava a sorte como jogador de basquete. Entre um jogo e outro, divertia-se escrevendo finais alternativos para filmes de ficção científica. Uma hora, tentou a sorte com personagens originais. Na época do basquete, também fez amizade com um personagem que seria importante mais à frente para a sua estreia na literatura: o jornalista, humorista e apresentador Rafinha Bastos.
Pouca gente sabia desse meu hobby de escrever, só os mais próximos. Alguns riam quando me viam carregando o calhamaço pra lá e pra cá. Perguntavam: "E essa lista telefônica aqui?"
— Um dia, ele me perguntou como estava a história do meu livro. Respondi que estava praticamente pronto. Ele contou que conhecia um pessoal que poderia estar interessado e perguntou e se eu poderia mandar um trecho. Era uma agência literária de São Paulo (a Agência Aspas e Vírgulas), interessada em projetos com essa mesma pegada do Game of Thrones. Um dia, eles me ligaram propondo um contrato de exclusividade. Eu tive que rir, porque não tinha mais ninguém me procurando — narra o delegado.
Enquanto os personagens de Carnarvon repousavam na gaveta, Marco ingressou na Polícia Civil em 2008, circulou por mais de cinco municípios e passou por experiências como a organização da segurança da Copa de 2014 e a Operação Clivium, que prendeu mais de cem integrantes de uma facção que planejava, entre outros crimes, o assassinato de uma juíza. Liderou, também, a força-tarefa que indiciou referências das manifestações de 2013 na Capital.
A carreira como policial ajudou Souza a amadurecer o texto cada vez que ele o revisitava. As cenas de combate, por exemplo, ganharam em verossimilhança. Bem como as intrigas políticas. Pela via da metáfora, o livro reflete episódios recentes da geopolítica, como os conflitos no Iraque e no Afeganistão. Já os personagens, ele repara, também se tornaram mais sisudos e o tom mais pesado ao longo dos anos. Porém, o delegado conta que o processo ocorreu ao natural. Nunca foi sua ideia escrever com base no cotidiano da polícia.
— Pelo contrário. Escrever é a minha fuga de uma rotina muito pesada. Na polícia, o cara envelhece uns cinco, seis anos a cada dois. Já a literatura é algo que eu faço com um prazer incrível. Quando engrena, é algo que consigo fazer por horas a fio — avalia.
A agência tenta convencê-lo a escrever um livro policial, mas ele, por ora, desconversa. Empolgado com a repercussão da estreia, o delegado planeja ao menos uma sequência e o spin off de um dos personagens.
— Gostaria que Carnarvon fosse algo multimídia, que possa render histórias em quadrinhos, roteiro de série e até músicas em parceria com outros autores. É um universo que, por mim, não precisa ter fim — planeja.
Longa vida a Zardoz.