De sorriso largo e cabeça erguida, José Ventura, 63 anos, esfrega os olhos para se certificar: o que estava se transformando em um lixão hoje é referência para jovens que buscam inclusão na Restinga, no extremo-sul de Porto Alegre.
— O pessoal me chamou de louco quando, há mais de 10 anos, coloquei a gurizada para correr em uma pista atlética improvisada. Me disseram que isso não ia sair do papel. O que disseram que era sonho hoje é realidade — conta o líder comunitário.
Depois de quase uma década, o Centro de Artes e Esporte Unificados (CEU) — rebatizado de Estação Cidadania pelo governo Bolsonaro — foi entregue em 12 de agosto à comunidade da Restinga Velha. E terá, nesta sexta-feira (23), as primeiras atividades culturais. Uma sessão de cinema e aulas de capoeira estão previstas para começarem às 14h30min, gratuitamente.
O orgulho de Ventura é do tamanho de sua insistência ao longo desses 10 anos. Apesar de não ser gestor do espaço ou da obra, ele insistiu com as autoridades sobre a necessidade de implantar um projeto naquele local e ajudou a evitar o abandono. Acabou por atuar como fiscal comunitário.
As lições da luta disfarçada de dança — criada pelos escravos nos mocambos — serão ministradas por Bolivar Martins Favila, 57 anos, que há mais de 30 trabalha com a atividade na Restinga:
— A capoeira dá disciplina e um caminho para a gurizada. Ensina respeito.
O mestre enumera os projetos dos quais participou. Com um pesar: há ainda muito preconceito pela arte surgida nos quilombos. Ventura compara o bairro onde vive aos espaços onde os negros eram mantidos até o século 19:
— A Restinga é um quilombo urbano. O povo negro foi sendo jogado para cá, retirado do Centro. Antigamente, para teres uma ideia, tinha só uma bica para todo mundo daqui.
A dupla de "paizões da Tinga" intercala os desafios para manter a obra ativa com histórias dos filhos adotados por meio do esporte.
— Chegamos a uma competição onde a nossa gurizada estava de pé descalço e os outros com tênis de marca. Se apostar nos nossos, der a mesma estrutura, eles vão dar certo — afirma Bolivar.
No espaço, há ainda o que ser feito. Uma área com barro visível espera por terraplanagem para se tornar pista de corridas. Ao fundo, uma tela separa o CEU de uma escola. A proteção improvisada deve ser substituída pelo muro que circunda a frente da praça do complexo, construída para as crianças mais novas.
— Com um trabalho de conscientização, o plano futuro é retirar todos os muros da frente. A comunidade tem que se apropriar. Sem grade, todo mundo se sente dono — espera Ventura.
O centro tem quadra de esportes coberta, pistas de skate e caminhadas, sala de informática, biblioteca e um cineteatro. O local é gerido pela prefeitura e por um comitê de lideranças comunitárias, que incluem Ventura e Bolivar. Um Centro de Referência em Assistência Social (Cras) também ocupará parte do local.
Parcerias com clubes de atletismo estão sendo buscadas pelos moradores, com a ambição de, no futuro, formar na Restinga competidores de nível profissional.
A secretária de Desenvolvimento Social e Esporte de Porto Alegre, Nádia Gerhard, ressaltou o empenho da comunidade para o sucesso do empreendimento. Disse ainda que a atual gestão realizou diversas reuniões com os moradores e que "foi feito o máximo para agilizar a inauguração tão aguardada".