Para quem circula por bairros da região central de Porto Alegre nos últimos meses, deparar com patinetes sobre as calçadas ou enfileiradas perto de estabelecimentos comerciais tornou-se tão comum que a impressão é de que elas estão sempre na rua. Mas, à noite, os equipamentos que passam o dia rodando pelas vias da cidade repousam na casa de diferentes anfitriões.
Parceiros da empresa dona das patinetes, os carregadores – ou chargers, termo em inglês que usam para se referir uns aos outros – são os responsáveis por recolhê-las das ruas e devolvê-las a pontos pré-estabelecidos durante a madrugada, com as baterias devidamente carregadas.
– A gente é tipo fantasma. Tem que ser tudo muito rápido, para dar tempo de coletar em mais de um ponto. No começo, as pessoas olhavam estranho, acho que pensavam que estávamos furtando, mas agora já estão mais acostumadas – conta Mauricio Cordeiro de Oliveira, que atua como charger desde o começo da operação na Capital.
À semelhança do que ocorre com os motoristas de aplicativos de transporte, os carregadores de patinetes não são funcionários, mas parceiros da Grow – fusão das startups Yellow e Grin –, que administra o serviço. Cadastrados no site da empresa, eles são autorizados a recolher os equipamentos a partir das 20h. Todos precisam estar de volta às ruas até as 6h.
– Um dos nossos princípios é promover a inclusão social e a geração de receita para a cidade. Em Porto Alegre tem gente que não tinha trabalho e hoje depende do carregamento de patinetes – diz o gerente de operações da Yellow, Guilherme Porto.
Por "razões estratégicas", a empresa não divulga o número de patinetes nem de parceiros na capital gaúcha – segundo Porto, há possibilidade de expansão para Canoas no mês que vem. O valor pago pela coleta varia. Para levar as patinetes amarelas até um galpão da Yellow, são pagos R$ 3,50 por equipamento. Quem recolhe equipamentos da Grin precisa levá-los para casa, carregá-los (os carregadores são fornecidos pela empresa) e devolvê-los aos pontos de retirada. Nesse caso, recebem R$ 5 por patinete.
Não é preciso ter carro para atuar como charger – segundo a empresa, há pessoas que fazem a coleta a pé.
O principal atrativo para os carregadores é a equação entre o tempo disponibilizado e o que recebem em troca. Os que relataram recolher, em média, 50 patinetes por dia, envolvem-se por cerca de duas horas na busca e outras duas na devolução dos equipamentos – mantendo o número cinco dias por semana, acumulam R$ 5 mil no fim de um mês. A vantagem é tamanha que o serviço pouco convencional tem se mostrado mais do que uma fonte de renda alternativa para parceiros ouvidos pela reportagem: três entrevistados relataram terem deixados os empregos para se dedicarem somente ao carregamento das patinetes.
Novos modelos de negócio têm transformado o mercado de trabalho no Brasil. As plataformas digitais de mobilidade e de entrega de produtos, como Uber, 99, Cabify e iFood têm 5,5 milhões de profissionais cadastrados no país, segundo o Instituto Locomotiva. O número inclui profissionais autônomos e os que têm emprego fixo, mas usam apps como complemento. Outra pesquisa, da Fundação Instituto de Administração (FIA) e da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), aponta que 87% de profissionais que atuam com entregas passaram a ganhar mais após usarem aplicativos como iFood, Rappi e Uber Eats.
Modelo de trabalho é tendência, diz especialista
Em meio a uma crise econômica que deixa mais de 13 milhões de desempregados em todo o país, modelos de trabalho alternativos, como o dos chargers, apresentam-se como caminho para que as pessoas mantenham-se em atividade, ainda que fora do mercado de trabalho convencional. Já no futuro, atividades como essa tendem a ser mais do que quebra-galho, segundo especialistas. Para o professor de empreendedorismo e finanças da ESPM Porto Alegre Nelmar Vaccari, ainda que as condições econômicas melhorem, a tendência é de que as empresas contratem cada vez menos funcionários nos moldes tradicionais.
– Não é só oportunismo, é um formato que veio para ficar. Mesmo saindo da crise, o nível de emprego não vai ser o mesmo que era antes. O emprego não vai acabar, mas vai mudar. E essas pessoas já estão se desvinculando da mentalidade de buscar o tradicional – avalia.
A tecnologia, ao que tudo indica, deve ser protagonista nas mudanças – startups de base tecnológica seguirão precisando de braços operacionais para prestar serviços. Os principais beneficiados com o novo cenário, na avaliação do professor, serão aqueles com espírito empreendedor.
– A gente está acostumado a confundir o empreendedor com os grandes empresários, mas quem identifica a necessidade de uma empresa ou de um mercado e arruma uma solução é um empreendedor. Eles vão se adaptar ao que vier, e resolver a vida em outros formatos – diz.
Renda para investir no próprio negócio
Jornadas duplas sempre fizeram parte da rotina de Marcus Fenalti, 42 anos. Transportador de cargas, o morador do bairro Glória já complementou a renda coletando aparelhos de telefonia, além de ajudar a esposa em uma banca em que vendiam cosméticos, no Bom Fim. Buscava uma alternativa quando descobriu, através de uma reportagem de GaúchaZH, o aplicativo de aluguel de patinetes.
– Como estava sempre buscando algo para complementar a renda, entrei no site da empresa e fiz um cadastro – conta um dos primeiros parceiros da Grin (agora Grow) em Porto Alegre.
No começo do ano, Marcus recebeu um treinamento e um conjunto de carregadores da empresa para realizar os carregamentos. Com uma kombi em que acomoda entre 40 e 50 equipamentos, realiza coletas pelo menos cinco vezes por semana, sempre por volta das 20h. Leva as patinetes para casa, pluga no carregador e desliga de duas a quatro horas mais tarde.
O despertador toca cedo: 3h30min já está de pé para distribuir as patinetes pela cidade – pela proximidade de casa, atualmente, foca na região do Menino Deus. Considera que a mudança na rotina valeu a pena. Há 20 dias, deixou para trás o antigo emprego para focar nas coletas.
A nova atividade também tem ajudado a família a viabilizar um sonho antigo. Com a renda mensal consolidada, alugou uma sala comercial para, com a esposa, estabelecer uma loja de presentes.
– Começou como incremento de renda, mas hoje é o caminho para o futuro. O que ganhar, vou investir na loja – sorri.
Investimento de R$ 3 mil e contratação de ajudante
Enquanto parte dos carregadores de patinetes atua em condições ainda modestas, recolhendo algumas dezenas por dia e carregando-as em casa, Mauricio Cordeiro de Oliveira, 37 anos, resolveu investir para otimizar a atividade. Com R$ 3 mil, fez uma instalação elétrica na van que usa para recolher os equipamentos para que pudesse carregá-los dentro do próprio veículo. O tempo economizado foi convertido em mais coletas na rua: carrega, em média, 100 patinetes por dia – a van comporta 150. Virou referência entre os colegas.
– No começo eu fiquei com receio, mas depois deu tudo certo. Facilitou meu trabalho. Hoje, para trabalhar tranquilo e sereno, recolho, em média, 100 por dia – diz Oliveira, que foi convidado por um funcionário da então Grin para atuar como charger no começo do ano.
Ao que tudo indica, o investimento já se pagou. O carregador não fala em números – mantendo a média cinco dias por semana, seus vencimentos podem chegar a R$ 10 mil por mês –, mas revela que contratou um ajudante para agilizar o serviço. A dupla deixa Viamão, onde mora, depois das 19h, e retorna perto da meia noite. Mauricio muitas vezes prefere não dormir até as 3h30min, quando sai novamente para entregar as patinetes. O expediente encerra por volta das 5h – é quando vai para casa descansar.
Apesar de ter trocado parte do dia pela noite, avalia que a nova atividade melhorou a qualidade de vida. Deixou para trás o trabalho para transportadoras, que, segundo ele, tomava quase 20 horas diárias. A nova rotina permite que leve o filho à escola, passe mais tempo com a esposa e, nos finais de semana, vire cliente do negócio no qual resolveu apostar todas as fichas.
– Ando direto, por tudo, da Goethe ao Gasômetro. É bem legal, é uma diversão para ir com a família.
Mais tempo para cuidar dos gêmeos
Nos últimos três anos, buscar um trabalho que se adequasse à rotina da família parecia missão impossível para Vinícius Cordeiro de Oliveira, 37 anos. Irmão gêmeo de Mauricio, um dos personagens desta reportagem, ele cria sozinho os filhos, também gêmeos, desde que a dupla tinha dois anos.
– Para poder cuidar deles, tenho que trabalhar à noite. Tentei Uber, mas estava perigoso – recorda Vinicius, que estava atuando no Uber Eats (braço da plataforma que faz entrega de comida) quando o irmão o alertou sobre a possibilidade de atuar como carregador de patinetes.
A atividade caiu com uma luva para o trio, que mora em Viamão. Vinícius conta com a ajuda da mãe para cuidar dos pequenos das 19h às 21h, enquanto faz as coletas, e das 3h30min às 6h, hora de retornar os equipamentos à rua. Durante o dia, prepara o almoço, leva e busca os pequenos na escola, e deixa o jantar pronto antes de sair para o trabalho.
– Já entreguei muita coisa na vida, mas nunca imaginei que fosse carregar patinete. Nem que fosse existir isso. Durmo pouco, mas vale a pena – diverte-se Oliveira, que coleta entre 40 e 50 equipamentos por dia.
As poucas horas fora de casa passam longe da monotonia. Em poucos meses, já encontrou patinetes penduradas em árvores e dentro de contêineres – não sem antes circular de um lado para outro atrás do que indicava o app. Também recolhe os equipamentos avariados e leva a um galpão da empresa no Quarto Distrito.
– É uma caça às bruxas. Tem gente que deixa dentro do condomínio, dentro da garagem. A gente avisa que não pode e, aos poucos, as pessoas vão se adaptando.