Quando Soraia entra no salão de beleza de dois pisos na Avenida Venâncio Aires, aberto especialmente para ela numa segunda-feira, o dono se apressa em oferecer um café ou uma água. Com sotaque porto-alegrense arrastado, a loira recusa:
— Eu quero uma bebida de álcool.
Segurando a taça de champanhe (não toma espumante), ela se senta com postura ereta na cadeira do cabeleireiro e maquiador Árlei Pereira. Não dá sinal de cansaço, embora tenha passado o dia preparando mojitos, servindo esfirras e operando o caixa do seu bar na orla do Guaíba. Troca o chinelo de dedo por um salto de oito centímetros e bico fino, a calça jeans por outra que imita couro, e a camiseta que é o uniforme do Sheik Burger por uma blusa de estampa poá — um estilo que ela chama de "putês". Dá umas boas borrifadas do seu Jasmin Noir no colo, e parece que até o jeito de andar muda: adota um passo mais lento e rebolado a caminho da sua casa de entretenimento adulto na Rua Olavo Bilac.
É assim que Soraia Maria Rosso Saloum vira Tia Carmen, um nome bem conhecido da Capital. Nove meses depois de anunciar a aposentadoria da noite, a empresária reassumiu a personagem e retomou as rédeas do Carmen's Club no último dia 18, como noticiou o jornalista de GaúchaZH Paulo Germano na coluna Perimetral. Para alegria de funcionários e clientes:
— Ela é a alma deste lugar — garante Paulo Martins, serviços gerais do estabelecimento.
Mas Paulety, como é chamado no local, demonstra preocupação com a chefe: não sabe se ela tira tempo para dormir. Com jornada dupla de trabalho, a empresária fica das 10h às 19h na orla, carregando um celular que não para de tocar, e, depois, até as 3h no clube. Ela garante que não é problema, nunca foi de dormir muito. No horário do almoço, ainda faz pilates perto do Parcão, três vezes por semana.
Soraia não quer desistir do bar que abriu em novembro no trecho revitalizado da orla. Cada cantinho da decoração do Sheik Burger foi pensado por ela: o retrato de um homem tomando chá, que trouxe do Marrocos; um pequeno altar com a imagem de Ganesha (divindade hindu), incenso e vasos com temperos; placas com mensagem de amor, paz, gratidão e fé. A letra grafada em giz nos quadros-negros da parede é dela própria, com o cardápio de sucos e chopes enfeitado com coraçõezinhos e uma carinha feliz.
Ela admite que tem "milhões de TOC" — até o guarda-chuva que decora os drinques tem posição certa. Antes de começar a entrevista, na tarde da última segunda-feira (1º), agarrou borrifador e pano para limpar uma sujeirinha que só ela viu na porta de vidro do bar.
O estabelecimento na orla é pet friendly. Apaixonada por bichos, Soraia tem dois gatos e dois cachorros vira-lata em casa. Um dos seus sonhos é comprar um caminhão e providenciar a castração de animais pelos bairros da cidade.
A empresária se gaba de preparar boa parte dos pratos do bar, que oferece kibe, esfirras, falafel, mas também pizza e hambúrguer.
Diz que prepara uma bela caipirinha e mojito tradicional, que tem um ingrediente improvável. No entanto, não revela o segredo. Igualzinho ao que faz ante algumas questões pessoais, como a idade ("Essa não é uma pergunta que se faz para uma mulher") ou quantos casamentos teve ("Alguns, não tantos quanto o Fábio Júnior"). Soraia não conta também se está namorando. Das coisas do coração, revela apenas que gosta de homens inteligentes.
Cobre com uma touca branca os cabelos lisos com luzes loiras e tira o relógio Rolex para por a mão na massa. Relata que aprendeu a cozinhar com o pai, imigrante libanês (já falecido). A mãe descende de uma família de italianos de Criciúma, em Santa Catarina.
Soraia nasceu em Porto Alegre, mas cresceu em Viamão, onde o casal tinha um armazém de secos e molhados. Ela estudou em colégio de freiras no município da Região Metropolitana. Acredita que foi uma experiência importante para a sua formação, para ganhar disciplina e aprender noções de religião. Mas, ao ser questionada sobre sua crença, dá a mesma resposta diplomática de quando o assunto é o candidato nas últimas eleições ou o seu time de futebol:
— Sou simpatizante de todas.
Soraia chegou a trabalhar em um laboratório de análises clínicas e foi caixa no Zaffari por alguns meses. Teve ainda experiência em Recursos Humanos, fazendo admissões e demissões no antigo Banco Sulbrasileiro. Na casa dos 20 anos, morou na Inglaterra (ela fala inglês e espanhol), onde admite ter trabalhado como acompanhante.
— Mas muito pouco. Também fui camareira, trabalhei em restaurante... — emenda, rapidamente.
De volta ao Brasil, atuou no ramo da moda com a irmã, administrando uma loja de roupas femininas na Rua dos Andradas. Conhecia muitas modelos por causa disso, o que acabou lhe dando a ideia de abrir uma casa de acompanhantes ("Havia várias misses"). Foi assim que, em 1998, criou o Carmen's Club, que viraria clube noturno mais tarde. A escolha do nome Carmen para sua personagem tem a ver com a protagonista da ópera do francês Georges Bizet, uma cigana que usa seus talentos de dança e canto para enfeitiçar e seduzir homens.
Admite que já pensou várias vezes em sair do Brasil em razão das críticas que recebe — diz que já foi muito discriminada na Capital.
— Parece que tenho um X marcado nas minhas costas — reclama.
Mas o principal motivo para desistir da noite, na metade do ano passado, foi sua desilusão em razão dos processos trabalhistas aos quais respondia. Entretanto, conta que o coração apertou quando viu o caminho que tomava o estabelecimento que abriu no bairro Azenha há duas décadas.
— Passei no clube e senti muita tristeza: não tinha clientes, não tinha frequentadoras. E aquilo antes tinha muita alegria — rememora, explicando que o contrato previa um período de experiência para os compradores.
Uma menina que frequenta há oito anos o Carmen's Club atesta que, "sem Soraia ali, nada funciona". Relata que clientes deixaram de frequentar enquanto ela esteve afastada.
— Ela traz brilho para a casa. E movimento — diz a mulher de 32 anos. — Se fiquei feliz com a volta? Não só eu: todas as frequentadoras ficamos.
Como essas marcas que viram sinônimo de produtos — Bombril, Super Bonder ou Xerox —, Tia Carmen se tornou referência em assunto de entretenimento adulto na Capital. Durante a sessão de fotos para esta reportagem, na orla do Guaíba, perguntei a uma jovem que passeava pelo local se sabia quem era a modelo. Não fazia ideia pela fisionomia, mas assentiu, rindo, quando ouviu o nome.
— É um dos mais bem falados e mal falados também — comentou a mulher, que tem 29 anos e é enfermeira.
O Código Penal proíbe casas de prostituição e qualquer tipo de exploração sexual no Brasil. Mas Soraia nega envolvimento com esse tipo de atividade. Ela afirma que o Carmen’s é uma casa com shows de striptease, que qualquer pessoa pode entrar, seja homem ou mulher, e seu faturamento vem só da venda de comidas e bebidas, dos ingressos e do aluguel de quartos do motel que fica ao lado do clube. Se as frequentadoras cobram algum dinheiro dos clientes, garante que não fica com nada
Até o ano passado, ela era mais cuidadosa em preservar sua identidade, não costumava dar entrevistas mostrando seu rosto. Mas a abertura do bar mudou isso — e ela está curtindo a nova fase. Ri contando que há gente que vai especialmente para vê-la de perto e que tiram muitas fotos suas.
Advogada da empresária, Cledia Padilha não se surpreenderia se ela resolvesse mudar de área novamente — se inventasse de ir para o ramo da estética ou da engenharia, por exemplo. A última novidade de Soraia é que ela pretende morar em um motorhome (hoje, a empresária tem uma casa na Ponta Grossa e uma na Cidade Baixa). Até já orçou o valor do veículo.
A culpa desse seu lado mais “maluco”, segundo ela, é dos astros:
— É que sou aquariana, né?!
Questionada sobre arrependimentos, diz que, depois dos 50 anos, não adianta mais pensar neles: o importante é viver cada dia da vida. Mas há um carma do qual ela adoraria se livrar, que é a alcunha de "tia". Acha que Carmen, apenas, é muito mais chique.
— E, sobrinhos, eu tenho só quatro.