Um projeto de lei em tramitação na Câmara de Vereadores de Porto Alegre deverá ressuscitar uma controvérsia: a proposta proíbe que símbolos religiosos sejam exibidos nas áreas públicas de repartições municipais.
Atualmente, o crucifixo está presente em locais como o plenário da Câmara de Vereadores. A proposta estabelece ainda que a instalação de ícones sagrados nos espaços sem acesso ao público teria de ser decidida por quem trabalha em cada ambiente. A Arquidiocese de Porto Alegre da Igreja Católica divulgou nota criticando a eventual remoção dos objetos de culto.
Primeiro suplente do PSOL, Marcelo Rocha protocolou o projeto de lei 334/17 em 2017, quando exerceu o mandato, para propor que o Executivo e o Legislativo do município ficassem "obrigados a retirar de suas repartições símbolos religiosos expostos em espaços destinados ao público". A justificativa da medida sustenta que "as repartições públicas continuam a apresentar símbolos religiosos relacionados ao catolicismo. Ainda que seja essa a religião de grande parte do povo brasileiro, não é papel do Estado posicionar-se religiosamente".
— Essa é uma pauta civilizatória, não é de esquerda ou de direita. A ideia de separação entre Igreja e Estado não é de agora. A junção entre os dois não traz coisas boas. O Estado Islâmico é um exemplo, ou teocracias como a do Irã — argumenta Marcelo Rocha, que se apresenta como religioso de matriz africana.
Essa não é a primeira vez em que o Estado discute a legitimidade de espaços estatais ostentarem ícones de uma determinada religião. Outro projeto, apresentado em 2014 na Câmara da Capital pelo vereador Marcelo Sgarbossa (PT), previa a remoção dos símbolos. A proposta não chegou a ir a plenário. Em 2012, o Tribunal de Justiça decidiu retirar esses objetos das salas do Judiciário do Estado, mas, em 2016, decisão do Conselho Nacional de Justiça permitiu que o foro de cada cidade pudesse optar.
— Hoje, o tribunal não adquire e não instala símbolos religiosos. Mas, se alguém quiser colocar no seu ambiente de trabalho, poderá fazer isso. Mantivemos apenas alguns símbolos que tinham valor artístico. No novo foro central, não foi instalado nenhum crucifixo ou referência a qualquer outra religião — afirma Túlio Martins, desembargador e vice-presidente do TJ.
A Arquidiocese da Capital divulgou nota informando que "reconhece a laicidade do Estado brasileiro e a separação entre Igreja e Estado (...)". Mas o texto argumenta que "a decisão (de remover crucifixos e afins) desconheceria a riqueza cultural e simbólica que o cristianismo produziu não só em nosso país. Neste sentido, a presença de símbolos religiosos em repartições e espaços públicos não fere a liberdade religiosa nem favorece uma crença determinada. Para a Arquidiocese, ainda, quando se retiram símbolos que marcam a história de um povo, deixa-se no seu lugar o vazio, e quando o vazio se impõe, perdem-se os referenciais que sustentam sua cultura e tradição".
Mas, dentro da própria Igreja, há vozes mais tolerantes à retirada das referências confessionais.
— Acredito que o projeto de lei é razoável. Não há razão para forçar a manutenção de símbolos religiosos em espaços públicos, que devem ser democráticos, se ferem a sensibilidade de algumas pessoas — analisa o padre e professor de Teologia da PUCRS Erico Hammes.
POSIÇÕES FAVORÁVEIS E CONTRÁRIAS AO PROJETO
A FAVOR
"Não se pode impor religião em espaços do Estado"
Carlos Steil, professor titular da UFRGS nos programas de pós-graduação em Antropologia e em Políticas Públicas, e membro do Núcleo de Estudos da Religião da universidade é contra a exibição de imagens sacras em repartições públicas.
Está correto impedir a exibição de símbolos religiosos em repartições públicas de acesso público? Por quê?
Sim, isso deveria ser proibido. Não há razão para, em uma sociedade laica e pluralista, religiosamente plural, privilegiar uma tradição, no caso a cristã, em relação a outras tradições ou crenças – até mesmo em relação àqueles que não acreditam. Pelo menos 7% da população brasileira se declara ateia. Em nome de uma sociedade laica e plural, que é o princípio de qualquer sociedade democrática, não vejo por que uma tradição deve ser privilegiada para expor seus símbolos.
Essa medida não poderia ser considerada como restrição à manifestação religiosa?
Restringir a exibição de imagens religiosas em repartições públicas não significa restringir a manifestação religiosa. Estamos falando de espaços que são do Estado. Não estamos falando de praças públicas, mas de repartições. Eu não chegaria a extremos como no México, onde há muitos anos chegou a ser proibido qualquer símbolo religioso em qualquer espaço público, ou na França, onde há restrição ao uso do véu em escolas. Sou contra isso. As pessoas devem ter o direito de expressar sua religiosidade, mas é diferente do espaço público privilegiar um ou outro grupo. Não pode se impor religião em espaços do Estado. Acho o cúmulo o STF (Supremo Tribunal Federal) ter um crucifixo.
Por que esse é um tema que provoca tanta celeuma no Brasil?
Desperta celeuma em toda parte, com exceção dos Estados religiosos, onde religião e política são totalmente identificadas. Em qualquer sociedade ocidental em que Estado e Igreja passaram por um processo de secularização, isso vai criar polêmica. O que temos no Brasil, hoje, é uma exacerbação do cristianismo na política. Você tem tanto evangélicos quanto católicos tentando impor na legislação, nos espaços, um ponto de vista marcado pela parcialidade do cristianismo.
CONTRA
"O crucifixo é um símbolo do Ocidente"
Wambert di Lorenzo, vereador agraciado com os títulos de Cavaleiro de Graça Magistral da Soberana Ordem Militar de Malta e Cavaleiro do Santo Sepulcro, concedido pelo Vaticano, defende a manutenção dos crucifixos em áreas do Estado.
Está correto impedir a exibição de símbolos religiosos em repartições públicas de acesso público? Por quê?
Não. O Estado é laico, mas a sociedade, não. É preciso diferenciar laicidade de laicismo. Laicidade é a separação do Estado da religião para manter a liberdade religiosa. Implica respeito aos símbolos religiosos. Somos ocidentais, e o Ocidente é cristão. Isso em nada fere o Estado laico. O laicismo são movimentos iconoclastas, que têm ódio à religião. Para essa gente, é uma falácia o Estado laico. O Estado laico, para eles, é o Estado ateu. Como o cubano. Cuba não é laica. A Constituição prega o materialismo, que também é uma escolha religiosa. Querem Estado ateu, mas não há base para isso. Temos uma Constituição cujo preâmbulo cita Deus.
Mas não há parcialidade no fato de os espaços públicos exibirem crucifixos enquanto há uma série de outras tradições religiosas?
Isso é uma falácia. O crucifixo é um símbolo do Ocidente e lembra uma grande injustiça. É um antípoda, uma antítese da justiça. Nos lembra que devemos praticar a justiça. É um domínio universal do Ocidente, não é propriedade só dos católicos. Isso é uma falácia. Ele só incomoda os ateus, isso sim. Judeus, que têm uma controvérsia com o crucifixo em razão do fato histórico em si (crucificação de Jesus), não pedem a retirada dos crucifixos. Há um constitucionalista de Nova York, rabino, que se posicionou contrário à retirada de crucifixos. O niilismo (negação de crenças e valores tradicionais) é, inclusive, uma das causas do Holocausto. Depois do niilismo, vem o totalitarismo. Não é um movimento em busca da democracia, é um movimento que tem um processo, como ocorreu na Alemanha.
Como vereador, qual sua expectativa em relação à tramitação do projeto?
Acho que ele vai ser derrotado pelo voto. Não analisei o projeto ainda porque fiquei sabendo dele agora. Vou mandar pesquisar. Vou analisar as questões jurídicas, mas, conceitualmente, acredito que não tem chance de ser aprovado na Câmara.