Por fora, a aparência é de apenas mais um conjunto de galpões da região industrial em volta do Aeroporto Internacional Salgado Filho, em Porto Alegre. Dentro, o cenário lembra um set de telenovela de época: há fachadas de casas coloridas com luminárias, quadros e outros detalhes que remetem ao passado. Acima delas, a vista para o telhado de zinco está sendo tapada por um teto cenográfico que posteriormente será adesivado com uma ilustração em três dimensões de um céu azulado.
É um detalhe ou outro que "denunciam" o que o imóvel será de fato. As portas largas por onde passarão cadeiras de rodas e andadores, as camas tubulares exigidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária revelam que ali funcionará um residencial para idosos, mas com uma peculiaridade: será o primeiro do Brasil focado em criar um cenário confortável para pacientes de Alzheimer e outros tipos de males degenerativos da memória. A ideia é que os residentes pensem mesmo que estão em um vilarejo tranquilo, em vez de um galpão em plena Avenida das Indústrias. A transformação custou mais de R$ 6 milhões.
— Pode parecer cruel, para quem não conhece o assunto, iludir uma pessoa. Mas garanto que essa é a melhor forma para lidar com o Alzheimer. Você não está enganando. Você está ajudando. No Alzheimer, não adianta confrontá-la com uma informação, com uma notícia. Ela só fica mais nervosa. Você precisa é entrar no mundo dela. Fazer o jogo da vida dela — descreve Jair Almeida, administrador de empresas e idealizador do Luka Hotel Residencial Senior.
Se o cenário lembra o do filme O Show de Truman — em que o personagem de Jim Carrey não sabe que vive em um programa de TV —, Almeida seria o equivalente ao diretor meticuloso interpretado por Ed Harris. De um escritório no segundo andar, acima do céu azul dos futuros residentes, ele mostra empolgado detalhes do projeto. Há uma central de monitoramento com mais de 40 câmeras que poderão ser acessadas de casa pelos familiares.
Segundo o administrador, cada ponto da decoração passou pela avaliação do neurogeriatra da casa, Francisco Pascoal Junior. As fachadas dos quartos como se fossem casas coloridas são para facilitar a assimilação dos pacientes do local onde eles vivem. Assim como o céu, paredes do empreendimento serão grafitadas com uma paisagem para dar a sensação de espaço aberto. O som ambiente de pássaros deve abafar os pousos e decolagens do Salgado Filho. Também está nos planos editar um jornal com notícias antigas, com fatos marcantes de décadas passadas, para entregar diariamente aos residentes.
— Naturalmente, ele não precisa ser atualizado todos os dias, porque eles não lembrarão do que leram no dia anterior. Notícias atuais também podem angustiar o paciente. Ele prefere que o presidente seja o Getúlio Vargas, de quem ele pode ou não ter lembrança, do que o Bolsonaro, que ele não sabe quem é — opina.
Os conhecimentos do empresário não vêm de nenhuma experiência na área da saúde. Ele conta ter se encantado com um empreendimento semelhante em Ohio, nos Estados Unidos, quando acompanhou um amigo que visitava a mãe, acometida de Alzheimer. De volta ao Brasil, realizou uma pesquisa de mercado sobre atendimento geriátrico e não encontrou nada parecido. Com uma equipe de 35 funcionários já contratados, a maior parte de profissionais da saúde, o empreendimento tem previsão de abertura para o final de janeiro com 90 vagas em um espaço de 1,9 mil metros quadrados. Serão 30 delas para cada um dos três graus de complexidade de atendimento. Os preços variam de R$ 6 mil a R$ 12 mil ao mês.
— Parece caro, mas imagina que um paciente, dependendo da condição da doença, pode precisar de até três cuidadores. O custo disso para uma família muitas vezes se equivale — compara.
Médico vê méritos em pontos do empreendimento
Diretor do Instituto de Geriatria e Gerontologia da PUCRS, Newton Luiz Terra vê méritos em alguns aspectos do empreendimento.
— Enxergo sentido, por exemplo, nisso das referências a outras épocas. As memórias mais resistentes costumam ser as de forte componente emocional. Então, um jornal que fale sobre a Copa de 1970 talvez tenha um efeito maior sobre o paciente. Também seria interessante que os quartos fossem decorados com fotos antigas da família deles, pelo mesmo motivo — sugere o médico.
Sobre outros pontos, Terra demonstra algum ceticismo. Conforme o avanço da doença, que é degenerativa e não tem cura, a ilusão de que o residencial é um vilarejo, por exemplo, pode ser irrelevante. Bem como algum senso de comunidade entre os pacientes.
— Há momentos do Alzheimer em que o paciente entra em delírio, fica agitado, agressivo. Acha que está sendo roubado. Que há um bicho na parede. Nesses momentos, a convivência com outros em condições parecidas precisa ser bem observada para não se tornar perigosa. Mais valerá, nesse local, o preparo dos cuidadores para lidar com essas pessoas, o jogo de cintura de acalmar, dar uma volta com o paciente pela sala, do que uma encenação sobre o local onde eles vivem — avalia Terra.
O que o médico salienta como mais positivo é o esforço de criar um residencial específico para o atendimento da doença. Um lugar em que possam ser testadas terapias ocupacionais recentes com resultados interessantes no bem-estar do paciente de Alzheimer, como a musicoterapia, a pet-terapia (com visitas de animais de estimação) ou a doll terapia, em que os pacientes são estimulados a adotar e tomar conta de bonecos — esta última já está nos planos do residencial.
— São raros os males geriátricos em que recomendamos internação frente ao convívio familiar. Mas o Alzheimer é um deles. É uma doença muito triste e frustrante para todos os envolvidos, dos cuidadores aos familiares e pacientes, pois eles só vão piorar. O que vier para desacelerar e tornar esse processo menos doloroso é bem-vindo — declara Terra.