
A Rua da Praia testemunhou o resgate de um pedacinho de Portugal. Ou melhor: de 378 pedacinhos.
A fachada de um dos últimos sobrados revestidos com azulejos portugueses de Porto Alegre, hoje endereço do Boteco Histórico, foi totalmente restaurada entre dezembro do ano passado e maio. As mais de três centenas de azulejos que sobraram para contar a história da casa de mais de 150 anos — que já foi moradia de um médico, sede de leilões, gráfica, fábrica de bolsas e até fliperama — foram combinados com cerca de 800 réplicas idênticas, feitas sob encomenda.
Profissionais de quatro Estados se envolveram na obra, que foi coordenada por gaúchos, contou com uma consultora baiana, restauradores catarinenses e uma empresa de cerâmica carioca. O arquiteto responsável, Lucas Volpatto, conta que foram necessários mais de vinte testes para achar o tom certo dos azulejos estampilhados azuis e com tulipas amarelas em relevo.
Os originais vieram da cidade portuguesa de Porto, conta Volpatto, embasado em pesquisa realizada por sua equipe. Os que permaneciam na construção histórica foram retirados para a recuperação e numerados para serem recolocados no local exato. O arquiteto relata que revestir a fachada com azulejos era uma alternativa para aumentar a durabilidade do imóvel no século 19. Tanto é que ela resistiu a anos de abandono e a um incêndio em 2009 — da construção no número 895 da Rua da Praia, apenas a fachada é original, o restante foi reconstruído.

— Os azulejos eram uma das oportunidades para fazer o imóvel durar. Se investia mais na casa, no revestimento, e durava mais, não tinha que pintar todo ano — explica Volpatto.
O restauro de toda a fachada foi exigido judicialmente. A Promotoria de Defesa do Meio Ambiente moveu uma ação civil pública contra o proprietário, que culminou em um acordo judicial. Quem arcou com os custos, de cerca de R$ 150 mil, foi o dono do Boteco Histórico, que loca o imóvel e é amigo do proprietário. Elogios ao resultado não faltam, segundo Valmir José Lando.
— Vou começar a ficar aqui na frente e cobrar pelas fotos feitas. Principalmente de turistas — diverte-se o comerciante.

A funcionária pública Noemi Dornelles, 45 anos, é uma que parou na Rua da Praia para analisar os azulejos de perto e fazer registros.
— Quando você passa rapidamente, não chama atenção. Mas, quando para e fixa o olhar, ela vai se revelando — salienta.
De acordo com o historiador Pedro Meirelles, o sobrado é um dos prédios mais antigos de Porto Alegre. A data de sua construção é uma incógnita. Sabe-se que, em 1866, servia de gráfica. Plantas de 1837 mostram que o lote já era ocupado — não é possível confirmar se com o mesmo imóvel, pondera Meirelles.
Ainda naquele século, a casa foi moradia de um médico baiano, abrigou uma marmoraria, depois uma chapelaria e um comércio pioneiro em moda, chamado Grande Magazine de Modas de Guilhermina Weber.
O historiador acredita que os azulejos foram colocados por volta de 1860. Em leilão de 1885, foi anunciado que tinha três portas no térreo e três portas em cima, com sacada, salão forrado com madeira e assoalho.

— Isso mostra que pertencia a alguém muito rico, porque se pagava imposto por aberturas na época — diz Meirelles.
No século seguinte, a construção serviu como sede de leilão de móveis e antiguidades e armazém de miudezas (secos e molhados). Nas últimas décadas, foi o endereço de fábrica de bolsas, pensão e fliperama. O sobrado já estava em ruínas quando, em 2009, um incêndio tratou de derrubar o que ainda estava de pé no interior. De acordo com o historiador, o segundo piso desabou e restou apenas a fachada, decorada com os azulejos portugueses:
— É interessante ele existir depois de tanta coisa. O sobrado nunca foi ligado a algo ou alguém de destaque e conseguiu escapar da demolição.

As quatro irmãs
A casa dos azulejos tem quatro irmãs espalhadas pelo centro de Porto Alegre. Assim como ela, imóveis ou parte de imóveis na 7 de Setembro, na Duque de Caxias, outra na Andradas e uma na José Montauri, junto à Praça XV, foram "considerados de valor histórico e cultural e de expressiva tradição para a cidade de Porto Alegre" em lei de 1977. Todas são inventariadas, segundo Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural de Porto Alegre (Epahc).
- Rua 7 de Setembro, 708, hoje sede da boate Cabaret
- Rua José Montaury, 121, junto à Praça XV, endereço de uma loja de variedades
- Andradas, 1.527, quase esquina com Marechal Floriano, abriga hoje uma loja de calçados
- Duque de Caxias, 876, fachada de um mercado