Uma história que levou a capital gaúcha aos noticiários nacionais e internacionais há quase seis anos volta a ganhar repercussão na manhã desta quarta-feira, na 1ª Vara do Júri da Capital, no Foro Central. A partir das 9h, o bancário Ricardo José Neis será levado a júri popular por ter atropelado 17 ciclistas. O motorista irá responder pelos crimes de tentativa de homicídio e lesão corporal.
O caso ocorreu em 25 de fevereiro de 2011, quando Neis, à época com 47 anos, descontrolou-se ao deparar com uma pedalada do Massa Crítica – movimento que realiza atos pelas ruas com o objetivo de divulgar a bicicleta como meio de transporte – e avançou sobre os ciclistas. O motorista dirigia um Golf e estava com o filho no carro. Teria ficado irritado ao ver a passagem bloqueada quando circulava na Rua José do Patrocínio, na Cidade Baixa, por volta das 19h. As imagens do atropelamento, que foram gravadas por participantes do ato, mostram Neis fazendo o que muitos chamaram de um "strike" de ciclistas.
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O bancário teve a prisão preventiva decretada em março de 2011. Pouco mais de um mês depois, obteve liberdade provisória. O Ministério Público o acusa por 11 tentativas de homicídio e cinco lesões corporais. Em entrevista concedida logo após a soltura, em abril do mesmo ano, Neis alegou ter agido "instintivamente", já que, conforme sua versão, os manifestantes teriam dado socos no seu veículo. Os ciclistas negaram ter iniciado a confusão e afirmaram que tentaram dialogar com Neis antes de ele atropelar o grupo. Na ocasião, não houve vítimas fatais.
Em junho de 2012, uma decisão determinou que o caso fosse julgado pelo Tribunal do Júri. A defesa de Neis recorreu ao Tribunal de Justiça e após, por meio de recurso especial, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), em Brasília. Esse recurso permaneceu na instância superior por um ano e meio. Em 2015, o processo retornou à 1ª Vara do Júri de Porto Alegre. Uma série de diligências foi realizada, a pedido do Ministério Público e da defesa.
Em fevereiro deste ano, por ser considerado de relevância social, o processo passou a ser acompanhado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pela Corregedoria-geral da Justiça do Rio Grande do Sul. O objetivo da medida foi dar maior celeridade à tramitação.
Artrite generalizada e trauma: o relato de um atropelado
Íntimo dos pedais desde os anos 1970, durante a infância na zona sul da Capital, Eduardo Iglesias foi ciclista profissional na década seguinte e faz da bicicleta seu meio de transporte até hoje. Também sobre duas rodas, sofreu um trauma que colocou Porto Alegre nas manchetes: ele é uma das vítimas do atropelamento da noite de 25 de fevereiro de 2011.
– Tive um choque, desmaiei sobre o capô (do carro) e acordei no chão, todo quebrado. Eu pedalava 400, 500 quilômetros por semana. Agora, não rodo 100 porque estou com artrite generalizada. Quando meu ombro está inflamado, me incomoda muito. Às vezes, é o tornozelo, o punho, o cotovelo. Fiquei com o braço torto – afirma, mostrando as cicatrizes.
Atualmente com 46 anos, relata que ficou com estresse pós-trauma e só voltou a pedalar cinco meses depois do episódio. Por um tempo, o pânico deu lugar ao sentimento de raiva.
– Comecei a agir com ódio. Qualquer coisa que acontecia no trânsito, partia para discussão. Parecia que a opinião pública e a imprensa estavam do lado dele (Ricardo Neis) – conta o ciclista, que é autônomo e teve de ficar meio ano longe do trabalho. – Para a minha vida, foi um baque. Tinha uma filha de um ano e outra de nove anos que não quis mais ir na Massa Crítica (as pedaladas) – acrescenta.
Sua relação com o movimento tinha alguns meses. E, no passeio anterior ao atropelamento, começou a "levar o pessoal da Zona Sul" junto para as pedaladas da Massa Crítica.
– Era uma celebração à bicicleta, uma festa alegre no meio da rua, com velhos e crianças – lembra, citando um vídeo no YouTube com o registro do evento de janeiro de 2011.
Apesar da repercussão, o ciclista acredita que o acontecimento não serviu como aprendizado, como uma oportunidade para melhorar o trânsito com mais respeito entre os meios de transporte. Pelo contrário, vê uma piora provocada pelo aumento do número de automóveis. Para ele, a saída passa por investir em campanhas educativas e punição a quem desrespeita a legislação.
– O julgamento (que se inicia hoje) pode simbolizar uma lição para que os motoristas comecem a rever o seu modo de dirigir, caso ele seja punido exemplarmente. Ou pode transformar o trânsito em algo pior do que já está, caso ele seja absolvido ou tenha uma pena branda – avalia.
Neis não fala sobre o caso e está em tratamento contínuo
Quando avançou o carro sobre um grupo de ciclistas, o bancário Ricardo Neis vivia um momento de transição na carreira. E as perspectivas eram animadoras. Arquivista do Banco Central, o funcionário público federal estava prestes a ser transferido para Pernambuco, onde tinha a expectativa de aumento salarial e crescimento profissional.
Mas ainda no início de 2011, após ter cometido o atropelamento coletivo, passou por uma série de exames no Instituto Psiquiátrico Forense. Não teve doença diagnosticada nem indicação para internação. O parecer recebido na ocasião: estresse pós-traumático. Após deixar a instituição, Neis foi conduzido ao Presídio Central, onde permaneceu por um mês até receber liberdade provisória. A partir de então, iniciou-se um período de reclusão e retomada da rotina, por vezes intercalado com semanas dedicadas às batalhas judiciais, que terão mais um capítulo hoje, com o começo do julgamento.
Conforme o advogado de Neis, Manoel Pedro Castanheira, o bancário permaneceu em Porto Alegre após o ocorrido por não poder deixar o "distrito da culpa", ou seja, por legalmente não poder sair do local onde havia cometido o atropelamento:
– Ele continuou morando inclusive no mesmo apartamento, mas foi muito hostilizado no prédio, tanto que, em alguns momentos, teve de sair do local. Mas decidiu permanecer vivendo lá, sozinho. Ele optou por não falar mais sobre o caso com quase ninguém, não quis mais aparecer.
Foi o que decidiu também o filho dele, sentado no banco do carona quando ocorreu o atropelamento. Segundo Castanheira, o adolescente, então com 15 anos, também teria sido vítima de agressões verbais na escola devido ao ocorrido, e decidiu silenciar sobre o caso. Na época, a guarda era compartilhada entre o pai e a ex-mulher, de quem Neis havia se separado anos antes. Hoje, já com mais de 18 anos, o jovem vive sozinho, mas mantém uma boa relação com o pai, garante o advogado.
Neis continua trabalhando no Banco Central, exercendo a mesma função. Na rotina, além do trabalho, dedica tempo para visitas ao consultório psiquiátrico. Desde 2011, está em tratamento contínuo. Há cerca de três meses, entrou em licença-saúde por não estar em condições de trabalhar. De acordo com o advogado, a aproximação do julgamento teria gerado, mais uma vez, um quadro clínico de estresse no bancário.
Para ciclistas, construção de ciclovias é lenta. EPTC fala em menos acidentes
Membro da Associação dos Ciclistas de Porto Alegre, Pablo Weiss vê a cidade como uma das capitais brasileiras mais avançadas no estímulo ao uso da bicicleta no aspecto legal, já que tem legislação específica determinando a construção de ciclovias. No entanto, salienta que ela é cumprida "de forma muito lenta".
– A gente observa um crescimento do número de pessoas que usam a bicicleta como meio de transporte, mas vejo que isso se dá principalmente em razão do trânsito como um todo, que está mais difícil – afirma.
O vereador Marcelo Sgarbossa (PT) define o atropelamento como um "momento de grande visibilidade da causa e do que uma pessoa é capaz de fazer", mas não atribui a ele o crescimento do cicloativismo e da busca por uma cidade mais voltada às pessoas.
– Um indicador é a própria Massa Crítica, que já vinha crescendo – ressalta.
O parlamentar relata que a relação dos ciclistas com o poder público é de "extrema desconfiança". Para ele, falta vontade política da prefeitura para tratar do tema:
– O que se tem dentro da EPTC são alguns técnicos e alguns estagiários mais sintonizados com a boa técnica da mobilidade, e as ciclovias têm tido algumas melhoras pontuais. Mas isso não é decisão política.
Alessandra Both, gerente de Projetos e Estudos de Mobilidade da EPTC, recorre aos dados para afirmar que há mudança positiva. Em 2011, a empresa pública registrou 254 acidentes com ciclistas, 41 a mais do que em 2015. O número de mortes caiu de sete para três. Neste ano, com os dados atualizados até outubro, são contabilizados 132 acidentes e quatro vítimas fatais.
– À medida que se começou a investir em ciclovias e esse modal passou a entrar mais em pauta, houve gradual mudança na aceitação por parte da população – diz a engenheira.
Tribunal do Júri
É composto por sete cidadãos da sociedade civil, que são sorteados entre um total de 25 jurados no dia da sessão. Julgamentos neste formato costumam ocorrer quando se trata de crime doloso contra a vida. Depois de ouvir as teses de acusação e defesa, caberá aos jurados decidir.
Os promotores Eugênio Paes Amorim e Lúcia Helena de Lima Callegari atuarão na acusação, representando o Ministério Público. Acompanhando o caso desde 2014, quem estará à frente da defesa do réu será o advogado Manoel Pedro Castanheira.
Os sete jurados podem decidir entre:
> Condenar o réu por tentativa de homicídio simples. Nesse caso, o cálculo da pena é responsabilidade do juiz.
> Condenar o réu por tentativa de homicídio qualificado (motivo fútil, perigo comum e recurso que dificultou a defesa). Nesse caso, o cálculo da pena também é de responsabilidade do juiz.
> Condenar apenas por lesões corporais. Nesse caso, o juiz julga a conduta do réu.
> Absolver o réu, se o júri entender que o réu é inocente das acusações.