*Por Leniza Kautz Menda
Mestre em Literatura e tradutora, autora do livro Rindo do trágico – O humor na literatura israelense contemporânea
Neste domingo, seremos brindados com a presença de um dos mais proeminentes escritores israelenses contemporâneos: David Grossman. Nascido em Jerusalém, em 1954, formado em filosofia e teatro, é um escritor conhecido pela temática de caráter pacifista e humanista. Ao lado de Amós Oz, está entre os mais notáveis defensores da solução de dois Estados para o conflito árabe-israelense. Dessa forma, a literatura produzida por ele representa uma poderosa arma para resgatar a dimensão humana dessa belicosidade milenar.
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Entre seus livros mais conhecidos e publicados no Brasil, temos: Alguém para correr comigo, Ver: amor, A mulher foge, Fora do tempo, O livro da gramática interior e O Inferno dos outros, lançado neste ano. Em O livro da gramática interior, o autor transplanta para a literatura israelense algumas das peculiaridades do judaísmo inerentes à vida nas aldeiazinhas da Europa Oriental. Sabe-se que a maioridade judaica do menino é comemorada através da cerimônia do Bar Mitzváh, momento no qual o varão lê os preceitos judaicos da Torá e se torna responsável por seus atos junto à congregação. Essa cerimônia sempre foi demasiadamente valorizada pelos pais que, em geral, proporcionam ao jovem rapaz uma festa muitas vezes além de suas possibilidades financeiras: "Mesmo faltando ainda um ano e meio para o Bar Mitzváh, o pai e a mãe viviam mergulhados até os cabelos em cálculos e economias. Eles estavam planejando algo grandioso, a mãe disse para ele com orgulho, e pretendiam alugar o majestoso salão Epirion e contratar um fotógrafo profissional do caríssimo Photo Gwirtz, e não deixar por conta do tio Shimek, cujas mãos perderam a firmeza ultimamente (...)". Grossman dá destaque especial à mãe judia, uma figura característica do gueto, a qual, na condição de imigrante da Polônia, foi levada para Israel atual. Não importando a situação geográfica ou a mudança de costumes, a mãe judia sempre continua a proteger os filhos, preparando para eles os pratos da culinária judaica e ansiando para que comam, uma vez que, para elas, a gordura e a robustez são essenciais ao bem-estar físico e psicológico: "Iochi'le, disse a mãe baixinho, nessa idade você tem de construir a sua base para toda a vida. Depois você pode emagrecer, mas agora é o fundamento para tudo".
Em muitos de seus livros, o autor aborda a realidade de um país jovem e vulnerável que tenta sobreviver em meio a vizinhos hostis. No romance Alguém para correr comigo, a narrativa gira em torno de dois jovens – Tamar e Assaf – que percorrem as ruas de Jerusalém seguindo caminhos e propósitos diferentes. Logo deparam com o submundo das grandes cidades: organizações clandestinas, criminosos e viciados em drogas. À medida que percorrem a zona urbana, vão conhecendo não somente a marginalidade, como encontram pessoas capazes de demonstrar solidariedade e compreensão em relação ao próximo. Simultaneamente a suas descobertas, há um processo de autoconhecimento. O retrato desses conflitos interiores denota uma perspectiva universal – os dilemas existenciais dos jovens personagens não estão circunscritos a Israel.
Um dos aspectos mais relevantes da obra de Grossman se refere à problemática dos grupos minoritários ou das diferentes etnias que compõem o cadinho cultural da sociedade israelense. Em A mulher foge, o autor traz à baila um humor ácido e preconceituoso quando menciona o personagem árabe Sammy, o motorista que trabalha para a família da judia israelense Orah. Os representantes das minorias árabes utilizam o humor como uma máscara de proteção para expressar os sentimentos doloridos e difíceis diante da dor e da vergonha que sentem ("Eles ficaram o tempo todo dizendo que eu sou um árabe de merda, e eu dizia, vocês podem estar jogando merda em mim, mas isso não faz de mim um árabe de merda", diz Sammy à certa altura). A manutenção da dignidade é essencial para evitar o desmoronamento interior.
Em O inferno dos outros, Dovale, um humorista decadente, apresenta um show de stand-up. Na plateia, pouquíssimas pessoas. No transcorrer do show, há uma demonstração de animosidade em relação aos palestinos; o conflito árabe-israelense se insurge nas piadas de mau gosto. Essa atitude de hostilidade é condenada pela audiência, que representa o alter ego de Grossman. Por meio da ironia, Dovale revela os defeitos da plateia, expondo, de modo bastante cruel, a falta de atenção dos espectadores que se comprazem a usar as mídias digitais à medida que o espetáculo vai se desenrolando: "Você, a pequena aí com o batom, você, sim, se maquiou no escuro? Ou a sua maquiadora sofre de Parkinson? Diga-me, boneca, você acha que faz sentido que eu dê um duro danado para fazer você rir enquanto você fica mandando mensagem de texto?".
O humor de Grossman é corrosivo, porém, ao mesmo tempo, funciona como instrumento de construção e reconstrução de uma herança cultural alicerçada no pacifismo e no respeito para com o próximo. Segundo o escritor, a empatia e o senso de humor são os melhores antídotos contra o fanatismo. Cabe, então, citar um pequeno trecho de Amós Oz, do livro Contra o fanatismo: "O humor inclui a capacidade de rir de nós mesmos. O humor é relativismo, é a aptidão de nos vermos como os outros podem nos ver, é a capacidade de entender que, por mais cheios de razão que estejamos e por mais terrivelmente equivocados que estejam os outros sobre nós, há sempre um aspecto disso tudo que é um pouco engraçado. Quanto mais você tem razão, mais engraçado fica. E, por esse motivo, você pode ser um israelense cheio de razão ou um palestino cheio de razão, ou qualquer coisa cheia de razão, mas, enquanto você tiver senso de humor, pode ficar parcialmente imune ao fanatismo".