Depois de meses de jogo de empurra entre Estado e prefeitura, a partir desta sexta-feira passa a vigorar um novo protocolo para emissão de atestado de óbito em Porto Alegre.
Mediado pelo Ministério Público, o acordo retira em definitivo do Departamento Médio Legal (DML) a tarefa de emitir os atestados em casos de morte sem violência – a responsabilidade agora é dividida entre os médicos das unidades básicas de saúde, o Samu e a central funerária. O sistema é provisório: vigorará até o dia 21 de novembro, quando os órgãos envolvidos se reunirão novamente para avaliar a eficácia do protocolo.
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O modelo implementado não é o ideal, segundo a promotora de Justiça dos Direitos Humanos Liliane Dreyer da Silva Pastoriz. Responsável pela negociação, pela proposta inicial feita por ela ao grupo, haveria um telefone disponível 24 horas, por onde o cidadão informaria a morte e uma equipe seria deslocada para remover o corpo até o morgue mais próximo. Lá, um médico emitiria o atestado de óbito em até 12 horas. Isso retiraria a obrigatoriedade de participação do Samu e evitaria o deslocamento de médicos dos postos – uma reivindicação do Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) que não foi acatada pela secretaria municipal.
– Por esse acordo firmado, os médicos deixarão de atender os vivos para atender os que morreram. Todos sabemos que tem fila nos postos, que faltam médicos. Tende a piorar – critica a vice-presidente do Simers, Maria Rita de Assis Brasil, que ainda cita os riscos para os plantonistas em ir ao local da morte, onde podem estar expostos à pressão de familiares ou à violência em áreas conflagradas pela guerra do tráfico.
O secretário municipal de Saúde, Fernando Ritter, discorda. Para ele, não há demanda que justifique manter uma equipe de plantão. A cada semana, diz, morrem na Capital entre quatro e cinco pessoas em casa – sem contar aqueles com suspeita de violência ou que contam com atendimento privado. Além disso, os morgues não teriam capacidade de receber todas as vítimas de causas naturais.
Autor do protocolo firmado, Ritter afirma que os médicos dos postos já se deslocam para fornecer declarações de óbito para aqueles pacientes a quem são referência. O problema, segundo ele, estava nas mortes ocorridas em finais de semana ou após o fechamento dos postos de saúde – caso vivido em setembro por de Ana Paula Dalmolin, que contou a ZH ter esperado oito horas para liberar o corpo do pai, morto na tarde de um sábado.
– Isso já acontecia, não estamos inventando coisa nova. O médico não vai deixar de atender uma urgência para ir dar um atestado, mas, na medida do possível, vai lá fazer. O posto não está bombando o tempo inteiro. E o médico está acostumado a lidar com atravessamentos em sua rotina – defende Ritter.
Ele ainda minimizou o risco do médico, justificando que haverá transporte para os profissionais – duas viaturas, localizadas em pontos estratégicos da cidade – e que os locais mais perigosos são "pontuais".
Médico plantonista de um posto da zona norte da cidade, um clínico-geral que prefere não se identificar tem opinião diversa. Confirma que está acostumado a fornecer atestado de óbito a pacientes que acompanha, mas que teme de ir a um lugar que não conhece.
– Imagina eu, no plantão da Bom Jesus, 3h de domingo. Chega alguém querendo atestado. Sem documento. Alguém que não conheço. Ter que entrar num lugar que nunca fui – pondera o médico.
Pelo acordo, o profissional não deve escapar de ter que ir até a casa do falecido, mesmo se for desconhecido. No entanto, se a vítima estiver sem documentação, deverá ser acionado o DML para fazer a identificação e, domente depois, a central funerária deverá transportar o corpo.
Acordo desafoga DML
Embora o acordo passe a valer nesta sexta, desde o dia 15 de agosto o DML não faz mais as necropsias nos casos de morte sem violência. Mesmo previsto em lei que as vítimas de causas naturais deveriam receber atestado de médicos do serviço público de saúde mais próximo, os peritos vinham atendendo esses casos por conta do impasse com a prefeitura.
De acordo com o médico legista Manoel Constant Neto, lotado na direção do Instituto Geral de (IGP), de 40% a 50% da demanda atendida até então pelo DML era de casos que não deveriam estar lá. Com a mudança, alega que haverá dois principais benefícios para a sociedade:
– Primeiro, menos famílias terão de passar por um procedimento policial. Segundo, que isso está devolvendo à segurança pública parcela importante do recurso material e pessoal para a atividade fim dela, que é investigar – resume Constant.
A legislação ainda prevê um Serviço de Verificação de Óbito (SVO), que avalia a causa de uma morte desconhecida ou duvidosa para fornecer o diagnóstico e dar informações complementares para o serviço de epidemiologia e políticas de saúde pública em geral. Em discussão no Estado há pelo menos 15 anos, a implementação do serviço, que pode ser municipal e estadual ou, ainda, compartilhado, não tem uma definição. Alvo de outro inquérito no MP, o assunto deve ser colocado em pauta novamente após o período de teste do protocolo.
*ZERO HORA