*Por Moacyr Flores
Historiador e ensaísta, autor de Revolução dos farrapos (Ática, 1995) e República Rio Grandense: Realidade e utopia. Porto Alegre (EDIPUCRS, 2002)
As comemorações do 20 de Setembro marcam a imagem do passado, construída por associações de ideias. O desconhecimento da realidade do passado provoca a criação do fantástico e do irreal, com lacunas daquilo que não convém lembrar, como as degolas, as pilhagens e miséria que ficou o Rio Grande do Sul após quase 10 anos de guerra civil.
Porto Alegre recebeu o título de Leal e Valorosa, concedido pelo Imperador Pedro II, por ter sido antifarroupilha, assim como Rio Pardo, Pelotas, Rio Grande, S. José do Norte e Caçapava, que foi capital. No entanto, todo o Rio Grande do Sul festeja a data da invasão de Porto Alegre.
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A propaganda republicana pelos sócios da Sociedade do Partenon Literário, criado em 1868, apropriou-se da data de 20 de setembro de 1835, como a imagem da revolta do Rio Grande do Sul republicano contra o Império. Artigos, poesias e peças teatrais exaltaram a luta pela liberdade. O escritor e professor Apolinário Porto Alegre saía com seus alunos do Instituto Brasileiro, marchando e cantando o hino A marselhesa até a Praça da Matriz, em comemoração ao dia 20 de setembro.
Apolinário escreveu contos regionalistas cujas ações se passam no período da guerra civil dos farrapos, como Valeiro, Tapera e o Cancioneiro da revolução de 1835. No romance O vaqueano, publicado em 1869, o personagem José Avençal é vaqueano de David Canabarro, acompanhando-o até Santa Catarina, onde encontra seu inimigo cruel, o imperial André Capincho. O imperial mata a irmã para evitar que ela se encontre com o farroupilha Avençal.
Caldre e Fião, no seu romance intitulado A divina pastora, condena as maldades praticadas pelos farrapos. No romance O corsário, o autor critica a atuação de um mercenário italiano que naufraga no litoral do Rio Grande do Sul e passa a lutar sob a bandeira da República Rio-Grandense, perseguindo o herói que é imperial.
Em 1877, Oliveira Belo publicou o romance Os farrapos, onde apresenta o personagem central como gaúcho. O enredo desenvolve-se com a traição de um indivíduo que passa a lutar do lado do governo imperial.
Historiadores como Alcides Lima, Joaquim Francisco de Assis Brasil e Ramiro Barcelos buscaram as raízes do republicanismo na luta pela liberdade dos farroupilhas contra a centralização do Império do Brasil. A propaganda republicana chegou ao fim com o golpe do marechal Deodoro da Fonseca, ao proclamar a República. Júlio Prates de Castilhos consolidou a república no Rio Grande do Sul; em seus artigos no jornal A Federação usou como tema a herança de liberdade, de luta e coragem dos republicanos farrapos. A Constituição estadual, de 14 de julho de 1891, elaborada por Júlio de Castilhos, estabelecia no artigo único do Título VI: "São insígnias officiaes do Estado as do pavilhão tricolor da mallograda República Rio-Grandense".
A Constituição e nenhuma lei estabeleceram módulos para a bandeira que de quadrada passou para retangular, recebendo no centro um escudo que constava no lenço confeccionado em Filadélfia, em 1842. A partir de então, os rio-grandenses passaram a ter um sinal de identidade, testemunho de uma luta republicana contra o Império.
Durante a preparação da Exposição do Centenário da Revolução Farroupilha mudou o nome do Parque da Redenção para Parque Farroupilha; historiadores e literatos editaram livros e pintores e gravurista reproduziram cenas imaginárias da grande Guerra Civil que abalou o Império do Brasil. Os visitantes da fantástica e feérica exposição sentiam-se orgulhosos de viver na querência dos farrapos, sem notarem que a tradição é sempre inventada, esquecendo o barbarismo, a corrupção e os interesses políticos de acontecimentos passados.
Em 1937 as bandeiras estaduais foram suprimidas, sendo restauradas pela Constituição estadual de 1947, que dispôs sobre a matéria no Artigo 237, Título XI: "O Estado terá como insígnia oficial o pavilhão tricolor da República de Piratini, e adotará igualmente o Hino Farroupilha".
Dois erros do legislador: não existiu a República de Piratini, o correto é República Rio-Grandense, conforme seus documentos oficiais. Não se conhece a música do maestro Mendanha e a letra não é a mesma publicada pelo jornal O Povo, órgão oficial da República Rio-Grandense, de 4 de maio de 1839.
Finalmente, a mistura de gauchismo com Guerra dos Farrapos completou o imaginário coletivo com novo sentido do 20 de Setembro: sirvam nossas façanhas de modelo a toda a terra.
Que façanhas?