*Por Jocelito Zalla
Professor do Colégio de Aplicação da UFRGS. Doutorando em História Social pela UFRJ. Autor de O centauro e a pena: Barbosa Lessa e a invenção das tradições gaúchas (Editora da UFRGS, no prelo).
Pode parecer estranho dizer que o evento histórico mais significativo para a configuração territorial, social e identitária do Rio Grande do Sul foi a Guerra Guaranítica (1750 – 1756). Principalmente em tempos de celebração da Guerra dos Farrapos (1835 – 1845). Mas existem balizas suficientes na história para sustentar a proposição: os limites físicos atuais do Estado foram, grosso modo, definidos no período; a população indígena dos Sete Povos permaneceu no território português; suas atividades produtivas nos legaram alguns hábitos, como o churrasco e o chimarrão. Então, por que é a chamada "Revolução Farroupilha" que ocupa o lugar de evento histórico emblemático e mito fundador da identidade política regional? Como essa narrativa se relacionou com o processo de invenção das tradições gaúchas no Rio Grande do Sul?
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Como a saída da Farroupilha foi conciliatória, com a incorporação da elite revoltosa à estrutura militar e burocrática imperial, levou algumas décadas para que o conflito com o governo central pudesse ser comemorado. Foram os historiadores republicanos, como Assis Brasil e Alcides Lima, que reabilitaram o episódio, já na crise do Segundo Reinado, transformando-o em marco do republicanismo brasileiro, em narrativas afinadas com a história-monumento que comemorava os feitos dos "grandes homens". Em contraponto, a ficção, vinculada ao projeto romântico de construção da nação pelo inventário dos tipos folclóricos, idealizava o campesinato local. Escritores como Apolinário Porto Alegre fabricaram um herói anônimo para a província, aproveitando o histórico bélico e cavalariço da fronteira, plasmado em imagens como a do "monarca das coxilhas" e a do "centauro das pampas". Eram duas perspectivas complementares de memória histórica. Nenhuma delas passava pela ideia de um Rio Grande gaúcho.
Ao longo dos séculos 18 e 19, "gaúcho" era um termo pejorativo, que designava, na região, o cavaleiro errante, sem trabalho fixo e sem nacionalidade definida, frequentemente envolvido em saques, contrabando e outros crimes de fronteira. Mas, no centro do Brasil, o imaginário a respeito do Rio Grande era pautado pelo universo platino gauchesco, visto como sinônimo de barbárie. Nas primeiras décadas do século 20, a geração de literatos naturalistas tentou contornar essa suspeita associando o mito do monarca das coxilhas ao gaúcho. Estratégia, aliás, que não foi consensual. No mesmo ano em que Simões Lopes Neto publicou os Contos Gauchescos (1912), os redatores do jornal A Federação, órgão oficial do Partido Republicano Rio-Grandense (PRR), criticavam o escritor José Verissimo por atestar a existência de gaúchos no estado, já que esse tipo rural estaria praticamente extinto.
A Revolução de 1923 acabou contrariando a opinião da elite republicana. As hordas fronteiriças que se opuseram a Borges de Medeiros acabaram sendo vistas como resquício do passado gauchesco. Findo o conflito, a pacificação simbólica das fações políticas locais precisava dar conta do problema. Sua união em torno de Getúlio Vargas, alçado a candidato presidencial, também implicava enfrentar o imaginário nacional negativo a respeito do gaúcho. Foi nesse período que se deu o mais notável esforço de mitificação da figura, que permitiu a adoção definitiva do termo como adjetivo pátrio, no lugar de "sul-rio-grandense", e pavimentou o caminho para a invenção de tradições gaúchas para o estado. Historiadores e literatos criaram, então, o mito do gaúcho heroico, ou gaúcho brasileiro, apelando à narrativa já consolidada da Revolução Farroupilha como prenúncio do destino republicano do país: um campeiro-militar, defensor da fronteira, de extração social superior, de nacionalidade luso-brasileira, portanto branco, além de ordeiro. No final dos anos 1950, o movimento tradicionalista gaúcho usaria esse mito na construção de seus rituais, encenados até nossos dias.
Portanto, foi a narrativa tradicional da Guerra dos Farrapos que permitiu a elitização da figura do gaúcho, confundida com os militares-estancieiros, e a invenção de uma identidade gaúcha aceitável para o Rio Grande do Sul. O encontro do mito da Revolução Farroupilha com o mito do gaúcho explica muito de nossa cultura política conservadora. Não é à toa que no Uruguai e na Argentina circule, com relativa força, uma imagem rebelde do gaúcho, ao estilo do Martín Fierro, de José Hernandez, um ícone da resistência dos oprimidos, apropriada por grupos populares e movimentos sociais. No Rio Grande do Sul, essa imagem configura uma memória subterrânea, constantemente patrulhada pelo tradicionalismo e pela elite agrária local, ficando restrita a poucos episódios e emblemas significativos, como a Guerra Guaranítica e o mito de Sepé Tiaraju. É por isso que não comemoramos esse evento. É por isso que o 20 de setembro farrapo foi escolhido como o "dia do gaúcho". O mito da Revolução Farroupilha pode, eventualmente, apelar a ideais de liberdade, ancorados numa fictícia luta de seus líderes contra a escravidão. Mas a verdade é que ele não questiona a estrutura social local. Muito pelo contrário, ele domestica os traços de rebeldia da cultura popular.