Nos anos 1970, Joni Mitchell cantava: "Eles pavimentaram o paraíso e puseram ali um estacionamento". De fato, pouca coisa simboliza a degradação urbana melhor do que esses lugares feitos para guardarmos nossos carros: eles são uma espécie de mal necessário mais feio que o demônio e com o poder de estragar completamente um cartão-postal. Só para citar alguns casos de nossa aldeia, fico pensando em quantas fotos do Beira-Rio já foram arruinadas porque aquele edifício-garagem simplesmente não sai do caminho quando se tenta enquadrar o estádio a partir da orla. Não custa lembrar, aliás, que o projeto inicial previa uma cobertura de grama que era como uma toalha de mesa bonita para esconder um móvel detonado, cheia de marcas de copo e de panelas quentes. Olhar para essas imagens agora, que circularam na imprensa na época em que a Copa do Mundo parecia uma linda perspectiva de mudança, dá a triste sensação de que o futuro saiu bem diferente do que gostaríamos. Assim, de um modo geral.
Da infância, lembro do cinema Astor, na Benjamin Constant, convertido em estacionamento depois de encerrar as atividades em 1994. Do velho prédio tinha sobrado apenas a fachada, se segurando para não cair como o resto, um pedaço de Sarajevo em uma esquina movimentada da minha cidade. Outro caso mais recente foi o do prédio salmão na esquina da Mostardeiro com a Comendador Caminha: demolição, limpeza do terreno, estacionamento temporário, lançamento de um novo empreendimento. “Dificilmente um terreno vira estacionamento por vocação. Ele está sempre no entremeio de um processo”, diz um homem do setor imobiliário no belo documentário intitulado E, que traz uma visão distópica da cidade de São Paulo, nos arrastando pelos mais peculiares estacionamentos lotados de carros cinza (o curta-metragem premiado pode ser assistido abaixo:)
E from Miguel Antunes Ramos on Vimeo.
Creio que o "processo" mencionado no depoimento pode ser entendido não só como a transformação de um terreno vago em estacionamento, mas também como a mudança mais substancial de uma cidade; uma mudança que, diferentemente do que podem pensar alguns, não está tão relacionada ao progresso como está a uma certa desumanização da cidade. Para voltar à aldeia, a Avenida Mauá é um bom exemplo disso: uma via de quatro pistas com, de um lado, uma fileira de edifícios-garagem e, de outro, um muro que separa a cidade do Guaíba, não tem potencial para muita coisa a não ser para prêmio de lugar-menos-convidativo-do-mundo.
Não se trata apenas de estética, portanto, mas da interação dessas edificações com o entorno. Nesse sentido, gosto do comentário do jornalista americano Christopher Swope: "Até mesmo estacionamentos atraentes ou ‘verdes’ podem criar zonas sem pedestres que sugam a vida da rua. Em um momento no qual a maior parte das cidades quer desenvolver regiões ‘caminháveis’ perto dos pontos de transporte coletivo, acredito que o melhor edifício-garagem é aquele que sequer precisa ser construído".