Bruno Lima Rocha
Professor de relações internacionais da Unisinos e da ESPM-Sul
O Iraque pós-Saddam Hussein é um território nominal com existência concreta duvidosa. Haider Al Abadi, o atual primeiro-ministro xiita, à frente do governo central com sede em Bagdá, tem a quase impossível missão de manter alguma integridade territorial, atuando na tentativa de reatar laços e vínculos com o mosaico étnico-cultural-religioso do "país". Ao contrário do senso comum da política contemporânea, no Oriente Médio, diversidade não implica boa convivência e sim reforço das rivalidades sectárias, cujas instâncias intermediárias de comando obedecem a sistemas patriarcais e religiosos, bem atados com o acionar maquiavélico das potências regionais e seus enlaces internacionais.
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Após a segunda invasão dos EUA sob o comando de Bush Jr., em março de 2003, o país outrora governado com mão de ferro pelo Partido Baath (nacionalismo militar árabe, de tipo chauvinista), tendo os postos-chave ocupados por árabes sunitas, preferencialmente da mesma tribo ou de aliados ancestrais dos Hussein, tornou-se uma colcha de retalhos entre tribos, clãs, autoridades religiosas, lealdades difusas e influência de vizinhos como Arábia Saudita e Irã. Na desconstrução da unidade territorial do Iraque e da Síria, a filial da Al Qaeda na região que se emancipara da matriz, o Estado Islâmico (Isis ou Daesh) apostou na desconstrução dos dois desenhos de Estado oriundos da presença francesa – na Síria – e inglesa – no Iraque hachemita – substituindo-o, pela força das armas e do contrabando de petróleo, em um emirado sob o comando do sheikh Al Baghdadi. Progressivamente, o Isis vem sendo derrotado em ambas as guerras, tendo no PKK – a esquerda insurgente do Curdistão – seu principal adversário político e militar. O enfraquecimento dos integristas do sheikh Al Baghdadi, somado à crise sectária do ex-premiê xiita do Iraque, Al Maliki, possibilitou a troca de governo em Bagdá e o consequente redesenho das alianças oligárquico-religiosas.
Empossado primeiro-ministro em agosto de 2014, o atual premiê Abadi viu-se obrigado a romper com o caráter sectário, quase que de exclusividade xiita, do governo central anterior de Al Maliki. Para cumprir tal missão, o chefe de governo trabalha com um conjunto de frentes diplomáticas, militares e políticas abertas. A tentativa de Bagdá é recompor um formato de governança compartilhada, fórmula inventada pelos franceses ao estabelecer os protetorados da Grande Síria e do Líbano, denominado confessionalismo político. Assim, a indicação de um ministro da Defesa sunita, Khaled Al-Obaidi, e tendo Fuad Masumm, o presidente formal curdo, origens oligárquicas (no KUP e antes no KDP), reflete a divisão de poderes fáticos de acordo com as macrolealdades (árabes sunitas, xiitas e curdos de dois dos três partidos políticos), respeitando a ordem social injusta, o patriarcado e a subdivisão sectária da sociedade.
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Na frente das relações exteriores, o premiê xiita tem de fazer a liturgia do campo de alianças do Irã, aproximando-se com relativa cautela do Kremlin. Qualquer alinhamento com a projeção de poder russa tem sérias consequências. Por um lado, o resguardo da Rússia de Vladimir Putin é o fator de vantagem estratégica iraniana na guerra multifacetada na Mesopotâmia e no Levante. Por outro, Abadi necessita deixar portas abertas para os aliados dos sunitas, e para tal deve manter uma relação amena com a Arábia Saudita e o Catar, monarquias conservadoras vitoriosas da Guerra Fria no Mundo Árabe e maiores financiadoras do terror integrista da Al Qaeda e filiadas. O Isis tem relações orgânicas junto ao Alto Comando da Turquia, tendo neste país membro da Otan sua potência regional protetora. Uma vez que o racha da Al Qaeda perde seguidos territórios e vê cortadas suas possibilidades de autofinanciamento e logística no Iraque, a opção estratégica é promover uma guerra assimétrica, aumentando o volume de atentados a bomba.
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É difícil apontar uma saída para a situação iraquiana. Mas, considerando a alternativa da nova constituição síria, baseada no Confederalismo Democrático vindo da esquerda do Curdistão, esta pode ser uma via possível. A democracia de tipo liberal é impraticável na região, e todas as chances de reconhecimento dos direitos coletivos passam por estabelecer regras de convivência entre diferentes grupos étnico-culturais e, simultaneamente, romper as amarras das autoridades patriarcais religiosas.