Em 1947, Cesar Lattes, jovem físico de 22 anos formado pela USP, foi para a Europa trabalhar com raios cósmicos no Laboratório de Cecil Powell, na Universidade de Bristol. Ali descobriu a partícula responsável pela força nuclear que mantém o núcleo dos átomos coeso, dando ao seu chefe o Nobel de Física em 1950. Até então, sabia-se que o átomo era composto por um núcleo de prótons (partículas positivas) e nêutrons (partículas sem carga), e que os elétrons orbitavam ao redor. Mas como os prótons eram todos positivos, deveriam se repelir. Como o núcleo se mantinha intacto? O físico Hideki Yukawa idealizou em 1935 a existência de uma partícula associada ao campo eletromagnético responsável por essa força. Mas foi Lattes quem demonstrou sua existência. O Nobel ficou com o chefe do laboratório, mas Lattes foi o primeiro autor do artigo na Nature que comprovou a existência da partícula, o píon.
Mais tarde, Lattes retornou ao Brasil, onde assumiu uma posição na Unicamp, e manteve-se atuante na ciência brasileira. Foi um dos fundadores do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq), um dos principais órgãos financiadores de pesquisa no país. A Plataforma Lattes, modelo citado no mundo inteiro, foi nomeada em sua honra: uma database que pode ser acessada no site do CNPq, em que toda história e produção cientifica de cada um dos cientistas brasileiros está organizada, servindo como o principal instrumento de acompanhamento e avaliação destes.
Neste mês, quando o governo interino demoveu o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, o fato foi comentado como trágico por revistas cientificas do mundo inteiro, principalmente a Science e a Nature. Os cientistas brasileiros protestaram com atos em universidades e trocando a sua foto na Plataforma Lattes por uma bandeira que dizia "Volta MCTI". Infelizmente, a eficiência desse tipo de ação é pequena. As pessoas que demoveram o MCTI nunca consultaram a Plataforma Lattes, nem sabem quem foi Cesar Lattes. Um erro fundamental da maioria esmagadora dos governos do Brasil, federais, estaduais e municipais, tem sido ignorar não apenas os cientistas, mas todos aqueles com saber técnico relevante para a resolução dos problemas da sociedade. Afetam um linguajar vago baseado em economia, mas comprovadamente mergulham na corrupção. Para quem defende não importar ter nome de ministério, e sim manter a pasta funcionando, é importante saber que os projetos não têm recebido seus recursos, nem há previsão disso.
Na semana passada, na Finep (órgão financiador de pesquisa e inovação), um grupo de cientistas foi chamado a selecionar os melhores projetos para enfrentar o problema do vírus zika. Já no início dos trabalhos, foi divulgado que 10% do orçamento desses projetos havia sido cortado, sem explicação.
O zika constitui um problema de saúde mundial. Pode ser transmitido pelo mosquito e sexualmente – e permanece ativo no sistema reprodutor masculino por meses. Nenhum outro arbovírus conhecido faz isso. Nada se sabe sobre como ele cruza a placenta, para depois atingir o embrião. Não existe tratamento nem vacina, e o diagnóstico ainda é precário. Alguns dos principais trabalhos sobre o assunto foram publicados por cientistas brasileiros, na Science e na Nature, que responderam imediatamente ao desafio, apesar de orçamentos ínfimos. Como Lattes, sua excelência permanece ignorada por governantes, que tampouco preocupam-se em investir em educação e preparar novas gerações para os próximos desafios. Sempre haverá um novo vírus, uma nova crise energética ou econômica. Não há economia sólida sem tecnologia. Que as aulas forçadas de conscientização politica a que hoje assistimos, ainda que a contragosto, nos ensinem a tomar as rédeas do futuro do país, ao invés de entregá-las passivamente a quem merece zero em cidadania.
* Cristina Bonorino escreve mensalmente no Caderno DOC.