Texto: Sergio Faraco, escritor e autor de Noite de Matar um Homem
Pesquisa: Valter Antonio Noal Filho e Sergio Faraco
PRÓLOGO
Enquanto escrevia notas biográficas de poetas para uma coletânea que organizava, recebi da Academia Rio-Grandense de Letras, por meio de seu secretário-geral, Rafael Bán Jacobsen, valiosa colaboração: as fotocópias de dois ensaios sobre Francisco Ricardo, patrono da cadeira 39, escritos pelo falecido acadêmico Dario de Bittencourt e publicados em 1936 e 1953. A leitura aguçou meu interesse pela vida do poeta à medida que, focalizando sua personalidade, Bittencourt estudava-lhe as causas da existência plena de desavenças, sem elucidar, contudo, o nebuloso incidente que, em Santa Maria, resultara no seu falecimento.
Em busca de subsídios, recorri a especialistas residentes naquela cidade, cuja dedicação à história do município, persistência, discernimento e generosidade são méritos proclamados por todos os que têm o privilégio de conhecê-los: a professora Therezinha de Jesus Pires Santos, coordenadora da Casa de Memória Edmundo Cardoso, e o pesquisador Valter Antônio Noal Filho, autor, entre outros livros, de Os Viajantes Olham Porto Alegre, em dois volumes, de parceria com o historiador Sérgio da Costa Franco.
Através da Casa de Memória, obtive uma reprodução fotográfica de Francisco Ricardo, que ofereci à Academia Rio-Grandense de Letras e hoje encabeça a página que a casa lhe tributa. Através de Valter Noal, que, além de franquear seus arquivos pessoais, esquadrinhou os acervos do Arquivo Histórico Municipal e da Hemeroteca Digital Brasileira, pude dispor de cópias de jornais contemporâneos de Santa Maria, Porto Alegre e Rio de Janeiro, fotografias, mapas, documentos cartoriais e peças de processos judiciais, a par do contato com o médico Aécio César Beltrão, que com admirável desprendimento – antepassados seus participaram do incidente – proporcionou-me fac-símiles de jornais porto-alegrenses dos anos 1920, fotografias e um depoimento pessoal.
O PERSONAGEM
Francisco Ricardo nasceu em Porto Alegre, no arrabalde do Parthenon, em 10 de outubro de 1893, filho de Marcos Ricardo, funcionário da portaria da Faculdade de Medicina, e de Ernestina Pereira Ricardo. Tinha vários irmãos e irmãs, e era o mais velho. Fez os primeiros estudos com a professora Rita Pires, na Travessa da Olaria, depois Rua Primeiro de Março. Em 1911 perdeu o pai, e foi nessa época que escreveu o primeiro poema. Para sustentar a mãe e os irmãos, empregou-se na companhia de seguros Garantia da Amazônia. À noite, frequentava o curso de taquigrafia da Associação Cristã de Moços. Em 1914, para evitar cismas raciais ainda comuns em Porto Alegre – ele era mulato –, transferiu-se para o Rio, onde passou a trabalhar como taquígrafo na Companhia de Seguros Sul-América. Nos anos 1914-16 fez os estudos preparatórios e, no ano seguinte, começou a cursar a Faculdade Livre de Direito da Universidade do Rio de Janeiro.
Continuava escrevendo e mantinha intensa vida literária, convivendo com autores como Hermes Fontes, Alcides Maya e Álvaro Moreyra, e publicando seus versos em revistas da moda. Em 1917, foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Novos, que reunia autores com menos de 30 anos. As noites eram reservadas à leitura na Biblioteca Nacional.
De algum modo a questão da cor ainda o embaraçava, pois em 1918, ao tirar a carteira de identidade, declarou-se de cútis branca.
Em 1919, publicou o poemário Solidão Sonora, que lhe valeu inúmeros elogios. Em 1920 foi aceito no quadro social do Salic Futebol Clube, ou seja, no término dos estudos universitários e com sua poesia já reconhecida, ainda era taquígrafo.
O clube, dedicado ao lazer esportivo, fora fundado um ano antes pela Sul-América para recreio de seus funcionários.
A diplomação dele, em 15 de março de 1921, foi saudada em O Paiz, uma confirmação de seu prestígio na capital da república após a publicação do livro: "Com distintas notas acaba de terminar seu curso jurídico na Universidade do Rio de Janeiro o acadêmico e apreciado poeta Francisco Ricardo". Tal renome também se expressa em fotos e homenagens em revistas como a Fon-Fon, fundada pelo escritor e crítico Gonzaga Duque.
Após a formatura, visitou a família em Porto Alegre, no Areal da Baronesa, que nos anos 1920 era uma zona do baixo meretrício. Ali subsistia sua mãe de trabalhos servis. Abatido, retornou ao Rio, e com o auxílio de ex-colegas cujos pais eram políticos e a proteção do presidente de Minas Gerais, Fernando de Melo Viana, tornou-se promotor público em cidades mineiras, primeiramente em Estrela do Sul, depois em Piranga e Prata. Em 14 de janeiro de 1923, o jornal Estrela do Sul noticiava sua chegada:
"(...) impondo-se à admiração e estima gerais, o Dr. Ricardo, pelo fulgor do espírito, vasta cultura, nobreza de caráter e bondade de um grande coração, é uma das individualidades mais conhecidas e admiradas no Rio, notadamente nas rodas literárias, onde conquistou o maior renome. A arte o tem, na poesia e na prosa, no jornal e no livro, como coluna de sugestiva imponência".
Outro jornal do Triângulo Mineiro, Colligação, em edição de 28 de setembro de 1924, lamentava sua veloz passagem pela cidade:
"Como um aerólito, cortando o espaço e deixando um rastro luminoso, passou por esta cidade o gigantesco e genial poeta Dr. Francisco Ricardo, promotor da comarca do Prata. Poucos instantes de palestra com o fecundo vate foram bastantes para tornar-nos intimamente ligados. Era a atração irresistível e fascinante que o gênio exerce. Pena que o Dr. Francisco Ricardo tenha se demorado tão pouco, deixando tão viva saudade!".
Não eram palavras vãs. O poeta era um homem de conversação cativante, atualizado, culto, que compunha versos em francês. Conhece-se um soneto que escreveu, Le Roman de Deux Soeurs, publicado em 3 de maio de 1925 num pequeno jornal mineiro, O Commercio. Sua cotação era tão alta que recebia flores das leitoras citadinas.
Ainda em 1925 resignou a promotoria em Minas Gerais para exercer idêntico cargo em Lagoa Vermelha, assumido em 14 de janeiro de 1926. No Hotel Familiar, onde morava, foi baleado em 29 de março do mesmo ano pelo advogado João de Paula e Silva, por "questões forenses", eufemismo da imprensa para seu envolvimento num escândalo conjugal. Removido para Cachoeira do Sul, dali saiu por igual motivo, já com nomeação para Santa Maria, onde ocupou a promotoria por brevíssimo período: de 12 de junho a 17 de julho de 1926. Nos meses seguintes, até sua morte, foi juiz distrital, cargo que, com autorização do governo estadual, permutou com o amigo José Luiz Natalício. Não se sentia à vontade como promotor. Um ano antes, escrevera sintomáticos versos que não incluiu em nenhum dos dois volumes inéditos que deixou preparados:
"Que és hoje na lei?
– Eu sou,
desgraçadamente apenas,
aquele que pede penas
para o próximo que errou!"
O CONFLITO
Em Santa Maria, inicialmente, seu cotidiano não diferiu do que lhe fora típico nos anos mineiros. Contribuía para a manutenção da família distante, cumpria os deveres do cargo, à noite participava de saraus na casa de Margarida Lopes, animadora cultural da cidade, e frequentava o Bar do Max, que segundo o pesquisador santa-mariense José Antônio Brenner situava-se na esquina da Avenida Rio Branco com a Rua Silva Jardim. Ali Ricardo se reunia com amigos e às vezes escrevia seus poemas. Residia no Hotel Kroeff, à Rua Venâncio Aires nº 1.
O regresso ao Sul, no entanto, parece ter provocado alterações em sua índole ou desvelado traços até então menos nítidos. Modos incivis começaram a se manifestar, ao mesmo tempo em que, pela estação ferroviária, chegavam de Lagoa Vermelha notícias de sua má fama. Em seu contumaz assédio às mulheres, comprometidas ou não – agora se sabia –, deixara um rastro de problemas por onde passara. Não contente com a peripécia lagoense e os ferimentos que tivera, no próprio hospital dera vazão aos seus impulsos, atacando as enfermeiras.
Em Santa Maria, passou a ser rechaçado em suas investidas.
Dario de Bittencourt, que também era mulato, amigo íntimo dele e seu hóspede no Hotel Kroeff dias antes de sua morte, via em Ricardo tendências para atos violentos, e era consabido que portava um revólver de calibre 38, arma que, nas horas vagas, costumava desarmar e lubrificar. E era um narcisista, acrescenta o amigo, demorava-se ao espelho para dar o nó na gravata ou pendurar uma flor à lapela, ao passo que o jornalista Júlio Magalhães registrou que ele se maquiava com ruge e pó de arroz. Em seus indefectíveis passeios pela praça, caminhava "pausadamente, compassadamente", algo tão esquisito que um escrivão o chamava de "O senhor dos passos perdidos". Bittencourt também alude ao seu descontrolado ímpeto sexual: era um courreur de femmes, como o Casanova de Stefan Zweig, ao qual bastava ouvir uma risada feminina para que ses narines frémissent. E complementa:
"(...) então, seus grandes olhos faiscavam com estranho e fulmíneo fulgor, rebrilhando as pupilas de felino, resfolegando as narinas inflantes, as ventas às escâncaras, tal e qual um fauno caprípede na perseguição de uma ninfa".
De resto, era praticante de cultos africanos, em seu quarto Bittencourt achou uma pulseira feita de corrente de ferro, a joia de Bará, orixá padroeiro da lascívia e dos prazeres do sexo.
Em janeiro de 1927, já como juiz distrital, protagonizou um escândalo que o jornal Gaspar Martins noticiou, mas não descreveu:
"(...) um juiz useiro e vezeiro nos desaforos, nas ousadias bem conhecidas nesta cidade, onde ele fez o que é notoriamente sabido e teria sido posto em pratos limpos pelo Correio da Serra se não fosse a intervenção de um ilustre cavalheiro desta terra, como se vê pelo referido jornal dos dias 1º, 2 e 4 de fevereiro do corrente ano".
De fato, em 1º de fevereiro o sobredito Correio da Serra, sem identificar o poeta, tinha reclamado em voz alta:
SENSACIONAL!
Em torno de um escândalo
"A nossa ativa reportagem está em campo, desde ontem, pela manhã, no sentido de colher informes minuciosos sobre um escândalo que se diz haver ocorrido domingo à noite, nas imediações do Cinema Universal, nele figurando como protagonista, um cavalheiro que nesta cidade se acha investido do exercício de altas funções públicas".
E no dia 2:
O GRANDE ESCÂNDALO DE DOMINGO
"Continua em campo a nossa reportagem em torno de um escândalo ocorrido domingo transato, à 1h30min da tarde e não à noite, como por engano noticiamos. O fato foi registrado e dele já possuímos certos e determinados detalhes, o que nos autoriza a desvendá-lo publicamente, apontando à sociedade o "indesejável" que não sabe corresponder ao carinhoso acolhimento recebido. Ainda por toda essa semana o Correio da Serra iniciará essa campanha de saneamento moral".
O misterioso fato, porém, foi abafado, e dois dias depois o jornal teve de confessar, com infundada vanglória, que cedera à pressão dos maiorais da terra, membros do Judiciário e da cúpula policial:
EM TORNO DE UM ESCÂNDALO
Por interferência de distintos cavalheiros desta cidade, dignos do nosso acatamento e consideração, resolvemos desistir de tratar do escandaloso fato há dias aqui ocorrido e já sobejamente conhecido do público santa-mariense. Estávamos, já, munidos de valiosos documentos, e a bomba, por certo, estouraria...".
Mas a bomba do Correio da Serra não estourou em fevereiro e tampouco em março, quando o Gaspar Martins voltou a comentar a ocultação do ato que Ricardo praticara, acusando diretamente o sub-chefe da polícia, Dr. João Bonumá, em corajosa carta aberta:
"É bem sabido que foi o sr. que ainda há pouco obstou que um jornal desta sua terra botasse em pratos limpos o fato escandalosíssimo ocorrido na frente do Cinema Universal, entre um alto funcionário da Justiça e..., sendo oportuno dizer que, segundo consta, lá para os lados de Lagoa Vermelha ou Vacaria já houve algo que deixa ver que o fato ocorrido na frente do Cinema Universal confirma o rifão do cesteiro que faz um cesto...".
Acuado pela imprensa e pelo clamor social, desmoralizado, mas ainda sem o arrefecimento de suas "ardências temperamentais" (Bittencourt), entreviu o poeta a chance de satisfazê-las através de uma ingênua e inculta mulher casada que vivia recolhida à casa, devotada aos serviços domésticos e às sete crianças que dela dependiam nos cuidados diários. Rosa Calderan Beltrão, nascida em 30 de agosto de 1897 em Santa Maria, era mãe de quatro filhos – as outras três crianças ela herdara do primeiro casamento do marido, Pedro da Silva Beltrão, que enviuvara em 31 de janeiro de 1919 justamente da irmã dela, Henriqueta Calderan Beltrão. Casara-se em 19 de julho de 1920 com o ex-cunhado, abonado sócio da firma Beltrão & Cia., proprietária de duas lojas de calçados, a Casa São Paulo e a Casa Royal. Na palavra de quem a conheceu, aos 29 anos era uma mulher mignon e sem grandes atrativos. Pedro, por sua vez, tinha 35 anos, nascera em 17 de setembro de 1891, em Tupanciretã.
Inaugurou-se o enredo com gracejos que o poeta dirigia a Rosa nas raras ocasiões em que a via, e dessas impertinências ela deu ciência ao marido, um homem que, como o juiz distrital, também andava armado, e lhe mandou um recado ameaçador: se não parasse, iria "sapecar-lhe as pernas". Esboçava-se o conflito, mas o poeta, ou não recebeu o recado, ou não se apercebeu dos riscos iminentes, ou já se habituara com o perigo ao ponto de desprezá-lo, o que é mais plausível: "Os amigos chamaram, vastas vezes, sua atenção para o perigo a que se expunha", fez constar Bittencourt, "mas ele não admitia tais conselhos". E persistia em seu assédio, tão obcecado que percorria várias vezes por dia as calçadas da Avenida Rio Branco, isto é, justamente o logradouro em que morava Rosa no nº 11, um chalé ao lado do palacete do médico italiano Nicola Turi.
ATO 1
23 de abril de 1927, oito da noite. Pedro conversa com amigos na Rua Dr. Bozano, como em regra após a janta. A temperatura cai e ele resolve passar em casa para se agasalhar. Não encontra a esposa, informam-lhe que recém ela saíra para comprar "linhas em novelos" na Casa Leão, quase quatro quadras lançante abaixo, na esquina com a Rua Ernesto Beck. Pedro veste o sobretudo e, ao sair, o susto, o pasmo: ele vê Ricardo, que também desce a avenida. Em seus sentimentos avulta-se não só a revolta contra os abusos daquele homem que não o respeita, avulta-se a suspeita, por não ter encontrado Rosa em casa. E decide segui-lo.
O script está pronto. Cada personagem tem seu papel determinado. Em minutos, vão se defrontar com seus destinos.
Pedro segue Ricardo, e logo já não é só o poeta que ele segue: vê mais à frente sua esposa. E vê mais: o poeta a ultrapassa e a cumprimenta, continuando ambos a descida. E ao longo dessas quadras, nem uma vez lhes ocorre um olhar à retaguarda, calçada acima, de onde vem, em céleres passadas, aquele que traz na alma atormentada o fadário de duas famílias. Na quarta esquina, Ricardo dobra à esquerda, toma a mal-iluminada Rua Ernesto Beck, na quadra entre a Avenida Rio Branco e a Rua Floriano Peixoto. Rosa não precisa entrar nessa rua – não era na Casa Leão que iria? –, mas ultrapassa seu suposto objetivo e entra, no encalço do poeta.
E desaparecem ambos na penumbra.
20h30min. Vai começar a tragédia.
O "ancião" Arthur Rodrigues Nunes, "mais de 58 anos", morador nos fundos da Casa Leão, na parte que dá para a Rua Ernesto Beck, ao sair pelo portão avista um homem de baixa estatura com um comprido sobretudo que caminha apressadamente, vindo da avenida. É Pedro, que avança pela Rua Ernesto Beck e vê "a muitos metros da esquina" sua esposa a conversar com Ricardo, quase defronte à casa do exator estadual e também poeta João Monteiro Valle Machado.
– Filho da puta! – ele grita, já de revólver na mão.
O outro, rapidamente, põe seu 38 em posição.
ENTREATO
Há um enigma neste conflito que talvez nunca seja decifrado. O que Rosa fazia ali, distante de sua casa, na rua escura, acompanhada de um homem cuja fama era por todos conhecida e verberada?
Até então, era uma mulher de reputação ilibada e se tem como provado que notificou o marido da obstinação do poeta. O encontro pode ter sido uma iniciativa dele, peculiar às suas inclinações: vira-a na avenida e a perseguira. Segundo um relato familiar, Rosa estaria acompanhada de uma filha de dois anos e cinco meses. Frise-se ainda que um dos filhos do primeiro casamento de Pedro, Odacir, relataria mais tarde que sua madrasta tinha ido à Rua Ernesto Beck para pedir a Ricardo que a deixasse em paz. Também cabe lembrar que, dois dias antes de morrer, o poeta escreveu no Bar do Max o poema intitulado Saudade e nele lamentava não ter conseguido seduzir uma mulher, ou seja, a "saudade" do que nunca teve, daquilo que sempre quis fazer e não fez.
Mas há outras pendências.
Rosa foi ultrapassada pelo poeta e o cumprimentou. Se desejava evitá-lo, não era o caso de fazer meia-volta? Ou quem sabe repreendê-lo ali mesmo, às claras, por suas demasias? Além disso, testemunhos de populares que a viram na Rua Ernesto Beck – um homem chegou a conversar com ela – não mencionam nenhuma criança. Acresce que ela admitiu conversar com um homem que a assediava, procedimento que teria sido, consoante seu próprio paladino na imprensa santa-mariense, Júlio Magalhães, um "grande erro", uma "grave falta", um "imenso pecado", adjetivação incompreensível se ele não conhecesse fatos que desconhecemos. E que fatos seriam? "(...) Isso que os amigos desse juiz estão dizendo é uma infâmia, uma indignidade", brada o redator do Gaspar Martins. Considerando-se sua veemente defesa da viúva contra o noticiário do Diário do Interior, tais fatos indicariam que, de acordo com o mesmo jornal, Rosa poderia ter alguma responsabilidade no cerco que sofria.
Suposições aqui e mais acima. Especulações. Não há respostas, prosperam tão só perguntas. Não há verdades. Nem mentiras.
ATO 2
O ancião Arthur ouve vários disparos e se esconde atrás do muro. Três projéteis atingem a fachada da casa do exator.
– Ainda não morreste! – certamente é Pedro quem grita.
Arthur retorna à rua e constata que já há algumas pessoas ao redor de um homem no chão. Ouve gritos. Mas quem primeiro chegou, após cessarem os tiros, foi certo Edmundo Ávila. Ele vê a mulher a pequena distância do ferido, que se esvai em sangue, e pergunta: "Quem é?". Ela responde que é o marido. Ávila reconhece Pedro, que fala com dificuldade e acusa o poeta – mas o poeta não se encontra ali. Ávila também reconhece Rosa e providencia na remoção do ferido para o Hospital de Caridade.
Pedro recebeu dois tiros, um de raspão no rosto e outro na face superior e posterior da coxa esquerda, bala que desviou para cima e lhe perfurou os intestinos: a versão do Correio do Povo. Em outra, o ferimento que causou a lesão intestinal e a hemorragia interna teria sido no abdômen, é o que revelam o Diário de Notícias e a certidão de óbito. Foi operado pelos médicos Severo do Amaral e Lamartine Souza.
Entrementes, o delegado de polícia Adalardo Soares de Freitas procura em vão Francisco Ricardo, julgando-o ileso e foragido. Por volta das 22h, os jornalistas Olavo Gianelli e Oswaldo Barcellos, do Diário do Interior, chegam à Rua Ernesto Beck para obter mais informações. Um transeunte informa que escutou gemidos e chamados entre a vegetação de um terreno baldio da vizinhança e não se animara a averiguar por receio de uma cilada. Os jornalistas vão até lá e ouvem alguém pedir com voz sumida: "Venha cá, venha cá”. Aproximam-se. É Ricardo, que após ser atingido caminhara um tanto até tombar no macegoso recesso.
EPÍLOGO
Os tiros do marido de Rosa tinham causado irreversíveis danos no pulmão esquerdo e no intestino do poeta, que se agravaram pela demora no atendimento. Transportado ao Hospital de Caridade, foi operado na madrugada do dia 24 pelos mesmos cirurgiões que tinham atendido seu oponente, assistidos por Nicola Turi. Não resistiu à peritonite, e morreu às 21h do dia 24, "após prolongada agonia", com 33 anos e seis meses. Foi sepultado no dia seguinte, às 10h, com grande acompanhamento: compareceram o juiz da comarca, Álvaro Leal, o promotor José Luiz Natalício, funcionários do foro e Margarida Lopes. O juiz determinou a suspensão das audiências e o fechamento dos serviços cartoriais em sua homenagem.
Pedro Beltrão resistiu um pouco mais. No dia 27, terça, os médicos informaram que, desde o dia anterior, tivera uma ligeira melhora e, lúcido, conversara com amigos e policiais, sem saber que Ricardo morrera e que ele mesmo não tinha chance de sobreviver. À 1h30min da madrugada do dia 28, quarta, ele faleceu. A cerimônia de seu sepultamento foi um ato multitudinário como havia muito não se via na cidade, e a imprensa o guindou a um controverso patamar de nobreza:
"Agindo como agiu, bem demonstrou ele a intensidade dos seus sentimentos de dignidade e que a virilidade da nossa raça não está de todo desvirtuada, pois que ainda há homens que preferem perder a vida, a conservá-la, sob a dúvida, sequer, de estar manchada" (Correio da Serra, 29 de abril de 1927).
Encerrava-se ali mais um capítulo da história de Santa Maria, cidade cuja memória ainda não se recuperara de outro conflito igualmente mortal e de semelhante repercussão por envolver pessoas de prestígio social, o assassinato do poeta Ernani Chagas em 1921, também em abril e também por causa de uma mulher, Herocilda Moreira, e o suicídio do assassino Olmiro Antunes, por envenenamento, em dezembro de 1922.
A morte de Ernani é referida em obra capital para o conhecimento da história da cidade, a Cronologia Histórica de Santa Maria e do Extinto Município de São Martinho 1787-1930, mas o confronto e as mortes de Francisco Ricardo e Pedro da Silva Beltrão ali não figuram. Compreenda-se altruisticamente essa omissão, conquanto não se possa justificá-la. Quem a escreveu foi Romeu Beltrão, filho de Pedro da Silva Beltrão e de Henriqueta Calderan Beltrão e portanto enteado da mulher que foi a causa da morte de dois homens.
O caminho de Rosa
– A foto acima, registrada pelo aviador Miguel Lampert em 24 de abril de 1935, mostra a Avenida Rio Branco, em Santa Maria, e traz, na linha vermelha, o trajeto de Rosa Calderan Beltrão até o local onde houve a troca de tiros entre seu marido, Pedro da Silva Beltrão, e o poeta Francisco Ricardo, na noite do 23 de abril de 1927.
– O destino de Rosa seria a Casa Leão, na esquina da Rio Branco com a Rua Ernesto Beck, onde compraria linhas de novelos. Mas ela avança e vai ao encontro de Ricardo, e a conversa dos dois é flagrada por Pedro, já com seu revólver na mão.
– Abaixo, foto aérea atual de Santa Maria. A Casa Leão já não existe há muito tempo, e o sobrado que a abrigava foi, provavelmente, demolido, assim como muitas das outras casas da época.