"Foi-se o tempo em que escrever em jornal depunha a nosso favor. Hoje somos todos golpistas", me disse a jornalista enquanto subíamos a Augusta. "Se antes o status do escritor era proporcional ao tamanho do veículo, hoje a lógica parece estar invertida." Comentei sobre o quanto a minha participação como colunista em um jornal impresso me deixa vulnerável e me torna um alvo fácil, mas ela foi veemente ao evidenciar a diferença entre o colunismo e o jornalismo: "As colunas são o espaço da resistência, é preciso ocupá-las com novas ideias. Os colunistas devem ser livres, embora muitos deles sirvam para legitimar os interesses dos anunciantes. Já as grandes redações... Essas se transformaram na assessoria de imprensa do golpe. Eu vivo esse golpe".
Estamos na Livraria Cultura. Fomos incumbidos de conversar sobre literatura e cinema. Enquanto aguardo a decisão sobre as fotos, abro a Folha de S.Paulo e me assusto com a série de anúncios pagos fazendo propaganda ao impeachment. Apesar da crise, parece não faltar dinheiro ao anunciante. A queda é mesmo um negócio rentável. Mostro-os à jornalista que olha sem saber o que falar, pensa nos salários e nas bocas que comerão às custas daquela publicidade, acha estranho, melhor não pensar. Nos despedimos quase quietos. Quase prevendo o pior.
Hoje a "voz das ruas" foi ouvida, e Dilma, afastada. Estou em Porto Alegre almoçando com um amigo que capitaneou manifestações pró-impeachment. Levou a família, brigou com esquerdistas e agora pretende mais ouvir do que gritar. Mudou. Ou pretende. Parece abatido. Com a palavra "golpe", veio a realidade. A luta para destituir um governo que ele considerava corrupto serviu para levar ao poder um governo ilegítimo. Meu amigo se sente iludido por si mesmo:
– Como posso ter sido massa de manobra? O mundo nos vê como golpistas, e nada pode ser pior do que isso. Todos os que nasceram depois de 1979 jamais viram um ministério formado só por homens brancos velhos e ricos. Todos os que nasceram depois de 1986 nunca viveram sem um Ministério da Cultura. Todos os que hashtaggearam "tchau querida" são responsáveis por isso. Eu sou responsável por isso!
Estamos sentados sob o sol da Padre Chagas. Em Cannes, Sonia Braga denuncia o golpe no Brasil. Fernanda Montenegro declara: "Esse governo, até quando ele existir na atual conjuntura do Temer, vai sofrer um protesto violento, e eu estou neste protesto". A esposa, que na época dos protestos ornou o Insta com selfies ao lado do pet pilchado de verde e amarelo e que hoje compactua com as musas do MoroBloco, aparece para o almoço. Meu estômago queima. Ela também não vê necessidade de a Cultura ter pasta própria:
– Precisamos pensar em saúde! Não em cultura.
À garçonete, ameaça não pagar os 10% caso a limonada venha muito ácida. Era isso o que eu sentia. A dupla de pets passeia com botinhas protetoras. A moça de branco carrega uma criança rica no colo. Meu amigo abre um pacote de presente denunciando o meu esquecimento sobre o seu aniversário. Sempre foi assim. Os anunciantes. Os colunistas. O finde dobrado sobre a mesa. A Padre Chagas.
Nos olhamos. Depois olhamos em volta. Voltamos a nos olhar. Não há como não sentir vergonha de estar aqui.
* Ismael Caneppele escreve mensalmente para o Caderno DOC.