* Mestranda em História pela UFRGS
"Moral não se mede por centímetro de pano", gritava a estudante. Essas palavras poderiam ser atribuídasa uma das meninas do colégio Anchieta que participaram do manifesto em defesa do uso do shortinho, assunto que teve repercussão nas redes sociais na semana passada. Mas o desabafo é mais antigo. Em 3 de abril de 1967, também em Porto Alegre, dessa vez na escola Júlio de Castilhos, o Julinho, estudantes saíram às ruas por causa de outra peça de vestuário, a minissaia, proibida pela direção. As duas cenas em muito se assemelham, mais do que por se tratarem de roupas da moda e pernas à vista, ou da rebeldia juvenil, mas por mostrarem que o corpo é espaço de uma batalha política, na qual o indivíduo busca sua liberdade e se impõe para o mundo.
São dois contextos diferentes: o regime político era outro, uma ditadura civil-militar instaurada havia três anos cuja margem de protesto era limitada, sob constante vigilância de uma polícia política. As características do período fazem do evento mais uma luta contra as práticas autoritárias explícitas - não só as saias deveriam ser abaixo dos joelhos como os cabelos dos meninos não podiam ultrapassar as orelhas - do que contra o machismo implícito das instituições. No evento de 1967, não se falava em corpo sexualizado, mas em moral, lembrando que nesse período a palavra sexo não era usada com tanta liberdade. Também o feminismo não alcançava o nível de discurso que o contexto permite hoje, principalmente em bocas tão jovens. A novidade que as meninas do Anchieta trazem talvez seja exatamente a qualidade de argumentação do discurso feminista reproduzido, que elimina qualquer ranço que possa existir em relação à superficialidade dos atos rebeldes das gerações mais novas.
Mesmo com diferenças nas falas, ambos os eventos combatem a autoridade que as instituições escolares têm sobre o corpo dos alunos, reflexo do poder do Estado sobre os indivíduos. Quando se trata do corpo, o privado torna-se público, como se observa em relação ao aborto, ao uso de substâncias ilícitas, às roupas. Seja por convenções sociais ou por normas legais de vestimenta, dita-se como se cobrir alegando a preservação de uma moral que nem bem se sabe a origem. Para as mulheres, o cargo torna-se mais pesado - literalmente, se se pensar no peso do vestuário feminino de séculos passados, com espartilhos, armações e camadas e mais camadas de tecido. Dizem que devem se defender dos instintos sexuais masculinos - até mesmo aquelas que mal atingiram a puberdade. Se fosse esse o caso, se revelaria um significativo atraso por parte dos homens no tão defendido processo civilizador ocidental, visto que, dentre tantos impulsos naturais controlados, estes ainda tenham ficado de fora. Mesmo assim, não parece fazer sentido, já que nem se pode dizer que é um instinto primitivo - não há nada de natural em tratar zonas do corpo feminino como áreas do prazer do olhar masculino.
A historiadora Mary del Priore explica no livro História Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil (Editora Planeta, 2011) que os conceitos e seus conteúdos mudam ao longo do tempo e do espaço, o que faz a nudez de séculos anteriores não ser associada ao sexo, como acontece hoje. Priore ressalta que o que antes era sedutor, como os pés e os braços que apareciam discretamente do corpo feminino coberto, atualmente passa despercebido, e vice-versa. Quando o Brasil era ainda Colônia, por exemplo, "os seios jamais eram vistos como sensuais, mas como instrumentos de trabalho de um sexo que devia recolher-se ao pudor e à maternidade", afirma a historiadora. O corpo coberto, aliás, pode ser considerado mais sedutor do que a nudez propriamente dita, o que é percebido em afirmações de Michel de Montaigne e Nelson Rodrigues. Para o primeiro, os vestidos fendidos das mulheres de Pegu, atual Birmânia, que mostravam demais, caíram no desgosto dos homens, que passaram a preferir uns aos outros. Já para Nelson, foi o tamanho micro dos biquínis que desvalorizou o corpo feminino, tornando-o "tedioso". Quem dera fosse de fato tedioso, pois então o shortinho não seria motivo de debate hoje. Nem tantas outras peças de roupas que em tantas outras situações da vida da mulher, além da escola, são transformadas em motivo de constrangimento.
Poderia se dizer que a escola tem direito de estabelecer uniforme ou seu próprio código de vestimenta. Que não é espaço para uma discussão complexa como essa. Mas, já na década de 1960, os alunos do Julinho souberam responder muito bem a essa questão: "Nossa atitude não se limita a esta medida tomada pela direção do colégio. É antes de tudo uma atitude de defesa. Apesar de jovens, sentimos a responsabilidade de impedir que nosso colégio se transforme num mero local de instrução, de transmissão de informações, entre professores e alunos vivendo em mundos completamente diferentes. Com esta revolta contra uma medida que nos parece completamente fora de propósito, estamos mostrando a nossos professores e à direção do colégio que estamos pondo em prática o que nos ensinaram, isto é, a respeitar o direito dos outros".
É uma pena que, 50 anos depois, sem ditadura e com o comportamento, em tese, libertado do conservadorismo do século 20, esses direitos ainda não sejam respeitados.