A foto de uma babá uniformizada empurrando o carrinho das filhas dos patrões durante a manifestação no Rio, no último domingo, dividiu as redes sociais ao longo da semana. Uns apontaram na cena um retrato da desigualdade no país, outros contestavam essa visão, exaltando o fato de que ela estava trabalhando honestamente.
Especialista em escravidão e movimentos sociais na década da abolição, a professora titular do departamento de História da USP Maria Helena Machado considera a cena emblemática. Trabalhando atualmente no projeto Amas e Mães Escravas, que pesquisa sociedades escravistas do Atlântico, em cooperação com universidades inglesas, Maria Helena não tem dúvidas de que a fotografia pode – e deve – servir para provocar reflexões mais amplas sobre as relações sociais do Brasil.
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A foto da babá nas manifestações provocou polêmica. Qual a sua interpretação?
Essa representação reatualiza uma imagem muito conhecida na escravidão, que é a da babá negra segurando a criança branca. É uma imagem que foi cristalizada, tem um clichê fotográfico, que é a representação de uma relação social. Como eram essas fotografias, que todas as famílias de prestígio faziam questão de ter no seu álbum? Era de uma mulher negra, jovem, quando era ama de leite, depois se tornava ama seca, um pouco mais velha, ricamente vestida, às vezes com as joias da família, xale, cabelo muito bem penteado, segurando uma criança branca, O interessante é que essas fotos encantam as pessoas. Elas não percebem que aquela imagem cifra um tipo de subalternidade, muito significativa na sociedade brasileira. Porque quando a gente olha aquela imagem, as pessoas imediatamente pensam numa escravidão doméstica, íntima, uma escravidão que conseguiu adocicar a violência. Como se pela proximidade da babá, da ama... pela família ter tido interesse em mostrá-la e pôr no álbum da família, isso representasse um laço de carinho. Essa ideia do escravo doméstico é muito comum na escravidão. Hoje, quando a babá é vestida de branco, obviamente é uma representação diferente daquela do tafetá, do xale, das joias, mas é um marcador de diferença.
A babá deu entrevista dizendo que estava só trabalhando, que ela própria tem uma babá...
A questão não é que uma família precisa contratar alguém para cuidar de seu filho. Isso é outra discussão. O problema é a maneira como se representa essa relação dessa mulher negra que tem de ser vestida de uniforme. A imagem é muito simbólica, porque o casal vai na frente, ela vai atrás, vestida de branco, numa relação de subalternidade. Ela está ganhando salário, é uma mulher que trabalha, ninguém duvida. Mas a sociedade brasileira é muito insensível às formas de dominação. Se eu contratar alguém e pagar um bom salário para a pessoa ficar de joelhos na minha frente, você vai dizer o quê? Que essa pessoa é uma trabalhadora? Essa relação indica relações ultrapassadas, das quais deveríamos ter consciência. Esse casal indo para uma manifestação política, onde se deve ter consciência social, arrastando essa relação que atualiza o passado escravista hoje, é contraditório.
O argumento do uniforme é de que ela estava trabalhando.
Sim, mas o uniforme significa o quê? Ela é enfermeira? Não. Aquilo é um marcador social. Não é como um capacete, que o trabalhador de construção precisa porque pode cair uma pedra na cabeça. É um uniforme de diferença social. É para mostrar que essa pessoa que está com os meus filhos não é uma amiga da família. Se você imaginar a cena de uma mulher negra, vestida de branco, atrás de uma família branca, seria intolerável nos Estados Unidos. Mas, no Brasil, parece que as pessoas ainda ficam embaladas na ideologia de uma escravidão doce, íntima, em que as diferenças sociais são superadas pelo carinho, sem levar em conta o nível de violência simbólica.
A babá reclamou da exposição que sofreu. Como a senhora vê isso?
Vi a entrevista dela. É uma moça que mora num lugar de baixa renda, tem um emprego precário, só trabalha final de semana... Agora, não é nada contra ela. É a maneira como essa estrutura de poder, de relação social, está expressa naquela imagem. Infelizmente, é uma imagem muito significativa das nossas relações sociais e da nossa falta de consciência, que é mais assustador ainda para quem estuda escravidão, de como as pessoas estão dessensibilizadas para essas estruturas de dominação. Acham que está tudo bem. É incrível a dessensibilização de uma sociedade que foi profundamente escravista até as portas do século 20, o último país da América a abolir a escravidão, o país da América que teve a escravidão e maior amplitude.
O Brasil mantém a mentalidade escravista?
É, uma mentalidade de subalternidade, inspirada nas relações escravistas. Em uma sociedade que nunca teve escravidão, você acha que seria admissível um casal ir para uma manifestação política com uma babá uniformizada? Claro que não.
Na sua avaliação, como seria uma relação saudável com uma babá?
Nos Estados Unidos, você contrata uma baby sitter, ela é igual a você. É um serviço caríssimo, pago por hora. E a pessoa é uma estudante universitária, uma pessoa que ganha, que não tem esse tipo de relação com você. Você não espera que ela represente uma segunda mãe, que te acompanhe quando você for passear na rua. É uma relação prática. Mas essas pessoas não saem na rua alardeando seu prestígio. É um pouco assustador como as pessoas facilmente começam a tornar pública essas relações de prestígio. Aqui as pessoas acham que é legal: "Olha, eu estou aqui com a minha babá". A babá senta na mesa mas está sempre constrangida, é ela que levanta para cuidar da criança durante o almoço. Ok, a pessoa está pagando, mas o fato de você pagar não significa que esta seja uma relação conveniente socialmente.