* Tradutor de "Hamlet" (Companhia das Letras, 2015)
Qualquer tradutor de Shakespeare, cansado de sua fiel labuta, pode pensar em algum momento, como exercício, que poderia simplesmente "recriar" uma peça de Shakespeare em outra língua... Mas nesse caso ele deixaria de ser tradutor: a tradução é um compromisso, uma luta entre a criatividade e a fidelidade. Quanta diferença com o teatro e sobretudo com o cinema que desfrutam de uma liberdade considerável em suas adaptações. Talvez a lógica do cinema seja incompatível com o Shakespeare original, com o autor de teatro do século 16 e 17, mas assim como insistimos em resgatar as joias do bardo em tradução, os cineastas também querem fazer sua parte. E às vezes buscam imitar a fidelidade dos tradutores, o que, em parte, nem sempre teve bons resultados.
Agora em cartaz, o filme de Justin Kurzel, Macbeth: Ambição e Guerra é mais uma heroica tentativa de adaptar essa peça ao cinema. Kurzel adaptou o texto de Shakespeare, cortou-o consideravelmente, o que em parte resultou em um filme mais visual e menos verbal. Onde no original há grandes discursos, na versão de Kurzel há fragmentos de diálogo - alguns cochichados para evitar a audição do efeito rítmico, não realista, do verso de Shakespeare. Onde no original havia o grotesco misturado ao trágico, no filme há apenas a seriedade dramática. A concepção que orientou o diretor foi a de transformar as palavras de Shakespeare em volumes atmosféricos, visuais ao extremo. O resultado foi uma adaptação interessante (mas não ideal), e se poderia dizer que Kurzel merece um lugar honroso não muito abaixo de outros diretores heroicos que se arriscaram com Shakespeare: Kurosawa (Ran), Roman Polanski (Macbeth) e Grigori Kozintsev (Rei Lear).
O que tem acontecido com o cinema "shakespeariano" nas últimas décadas é que os diretores descobriram, para usar as palavras tortuosas de Polônio, que "só é possível encontrar o norte com alguns desnorteios". Mais recentemente uma impressionante adaptação de Coriolano dirigida por Ralph Fiennes transpôs as guerras quase míticas dos romanos para um contexto bélico e político que evoca as recentes guerras balcânicas. E o que dizer do Titus Andronicus, de Julie Taymor, que transportou a monstruosidade absurda dessa peça caótica para um cosmos historicamente inexistente, misto de universo surrealista, kafkiano com pesadelo totalitário?
Kurze aprendeu muito com esses diretores, mas também com diretores menos badalados. Seguindo as lições deles, Kurze evitou os figurinos elisabetanos, preferindo imaginar uma Escócia mítica e tribal, onde os guerreiros se vestem com roupões "étnicos" bastante convincentes que lembram os que foram usados por Pasolini em seus filmes. Jerônimo Teixeira escreveu recentemente que há som e fúria demais no filme, muitas vezes "significando nada": em alguns momentos temos a impressão de estar assistindo algo parecido com 300, ou ainda o Coração Valente... Mas o diretor não vai tão longe, deixa-se influenciar, mas sabe onde parar. A mesma decisão do diretor de figurar os clãs "étnicos" o levou a abolir o castelo de Macbeth, o que causou estranhamento, mas até isso é plausível. Os escoceses do filme de Kurze ainda são povos um pouco nômades, vivendo em certo primitivismo de clã, tribal - o que condiz com a ideia da peça. Eles vivem em tendas: ora a história de Macbeth e de Banquo, tirada das Crônicas de Hollinshed, o historiador Inglês em cuja crônica Shakespeare encontrou um resumo para suas futuras peças, tem contornos míticos e não históricos. Ela nos lança para o ambiente nebuloso e perigoso - enfim, um lugar imaginário, a Escócia mítica imaginária cuja imagem se renova a cada geração.
Michael Fassbender (Macbeth) consegue incorporar a natureza complexa de Macbeth, que combina ambição desenfreada, pruridos ocasionais de consciência, uma certa fragilidade que caracteriza muitos personagens masculinos de Shakespeare, sobretudo quando diante de mulheres de ânimo viril como Lady Macbeth. É convincente na sua paranoia de tirano: Fassbender dá a expressão correta do usurpador que, após o primeiro crime, vira uma máquina assassina, o que leva ao surto sanguinário desenfreado. Marion Cotillard faz uma Lady Macbeth que considero nova: seu rosto delicado e lindo não faz adivinhar sua perfídia - o que é bom. Ela traz até um leve sotaque francês que é desejável para representar essa figura cuja finesse se confunde com sua agudeza no crime. Num filme repleto de planos abertos sobre grandes vistas, o diretor explorou o inverso desse angustiante espetáculo natural: os primeiríssimos planos sobre o rosto assombroso de Cotillard cujas expressões alternam toda uma gama complexa de sentimentos, do amor à ambição, da ambição à perfídia - e finalmente, o enlouquecimento. Esse procedimento do close-up tem por efeito transformar os solilóquios em fragmentos de psicodramas. É um modo de transformar uma peça de Shakespeare, legítimo, ainda que estejamos aqui um pouco longe do bardo...
Brilhante, sublime, impecável na qualidade da imagem e dos atores, o filme, contudo, flerta com a estética do espetáculo e usa demais os famigerados filtros e outras trucagens. Há um exagero infantil nas cenas "sanguinárias" de batalha, estetizadas demais. Esse monocromatismo prejudica o senso de contraste estético. Eu lembro que uma das cenas mais conhecidas de Macbeth é aquela em que Banquo e Duncan elogiam o castelo de Macbeth e o ar do local. Banquo diz ali que até o "hóspede do verão", ou seja, a andorinha, aprova o local como bom, agradável - e o lugar vai ser o lugar da morte violenta de Duncan. O clima invernal do filme não permite adivinhar que Duncan morrerá no início do Verão e não no inverno. Mas o filme de Kurzel impressiona mesmo sem os contrastes primorosos de Shakespeare: e dentre suas qualidades está um senso rítmico dos movimentos que torna cada ação e cada imagem interligados, não mais pela palavra, mas pela estranha sinfonia de imagens, cores e atmosferas.