Explicar a corrupção política tradicional é relativamente fácil. Presos aos privilégios, os donos do poder julgam correta a simbiose entre seus bolsos e os cofres públicos. Já fornecer razões para a corrosão ética progressista é mais complicado. As Luzes, doutrinas que inspiram a esquerda jacobina, herdaram dos revolucionários puritanos ingleses a igualdade política, na luta contra a venal monarquia absoluta. Surge daí o mito da esquerda incorruptível, título outorgado a Robespierre. A cada versão do jacobinismo o mote retorna: o Estado, aristocrático ou burguês, está imerso necessariamente na corrupção. Para destruir tal inferno, só a prática revolucionária. O resto se limita à conversa reformista que apenas adia a morte das elites parasitárias.
Um pilar do Estado burguês, pensam setores à esquerda, é a legalidade. Esta seria um cálido truque dos capitalistas e de suas bases políticas ou jurídicas. Uma coisa seria a justiça almejada pelos oprimidos, outra o simulacro legal que auxilia as classes dominantes. A incorruptibilidade da esquerda é mitológica já antes do Termidor. Apesar de seus muitos políticos honestos, boa parte dela já se entregou à dilapidação do tesouro público sob Robespierre. Michel Benoit, historiador nosso contemporâneo, publicou correta análise da ladroagem jacobina: 1793: A República da Tentação - Um Assunto de Corrupção na Primeira República (Paris, Éditions de l Armançon, 2008). Jacobinos roubaram joias da Coroa francesa e açambarcaram bens nacionais em proveito próprio. A técnica defensiva dos larápios "virtuosos" era acusar adversários de crimes idênticos, não julgados ou punidos. A história lembra algo a você, caro leitor? Pois é, nihil sub sole novum
O Termidor foi o triunfo da parcela corrupta e autoritária da Revolução Francesa. "Os bandidos venceram", gritou Robespierre no momento em que foi deposto por seus companheiros da esquerda. Tal setor se beneficiou com o império corrompido de Napoleão. A desculpa de que a lei serve aos dominantes burgueses leva parte dos progressistas ao crime sob a aparência de "expropriar aristocratas e burgueses". O luxo dos expropriados passa a nutrir quem falava em nome dos oprimidos. Muitos enriqueceram ao optar por Napoleão: da praça subiram aos palácios, onde o apoio ao Corso era vendido conforme o mercado político.
Desculpa similar foi exposta por György Lukács em nauseante artigo recolhido de História e Consciência de Classe. No texto Legalidade e Ilegalidade, ele afirma que a vida revolucionária não deve obedecer à lei, mas seguir as circunstâncias da luta das classes. A decisão sobre agir seguindo a lei ou dela fugir "depende inteiramente da utilidade momentânea; em tal atitude completamente sem princípios reside o único modo de negar praticamente por princípio a validade da ordem jurídica burguesa". Os jacobinos ladrões também pensaram assim e muitos "revolucionários" seguiram tal parolagem.
Vejamos a lógica assumida por tais meliantes: o Estado é propriedade da burguesia. Mesmo empresas públicas pertencem aos dominantes. Logo, a vanguarda dos dominados pode expropriar em favor da causa justa tudo o que puder para vencer os burgueses. A consciência moral ou ética dos rapinadores fica tranquila: roubam em favor dos oprimidos. Mas, a exemplo do que ocorreu na Revolução francesa com os larápios jacobinos, o fruto do roubo segue em pequena escala para a causa alardeada e se detém na maior parte nos bolsos dos "revolucionários". G. Lukács chegou a ser próximo de Carl Schmitt, inimigo ferrenho da legalidade. Ambos desprezam a lei em proveito de suposta justiça legítima. "Nosso tempo é fortemente dominado por uma ficção, a da legalidade, e tal crença num sistema de rigorosa legalidade se opõe manifestamente e de modo claro à legitimidade de todo querer aparente inspirado pelo direito"(Schmitt).
Os nazistas negaram a lei, o fruto todos conhecem. Os progressistas idem. Como veremos em artigo futuro, a contaminação entre pressupostos nazistas do direito e a ortodoxia partidária do stalinismo é tremenda, mas dificil de ser negada. Recordemos o "nacional-bolchevismo", delirante união dos opostos. O problema, discutido na Grécia e na Roma antigas - o choque entre justiça e lei- serve para negar o normativo e o justo, em prejuízo do povo e do regime democrático.
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
Leia mais textos de Roberto Romano