*Fundador da Lung e professor do curso de Comunicação Digital da Unisinos
Em meio à histeria das timelines com o bloqueio do WhatsApp, determinado quarta-feira pela Justiça de São Paulo, boas lições podem ser colhidas do episódio em meio à vítimas deixadas na cena do crime. Aprendizados se consolidaram, como o uso dos memes para rir da própria desgraça - alguns creditaram a suspensão do serviço à estreia do novo filme da franquia Star Wars e o medo de disseminação de spoilers da saga Jedi, ou ainda à apreensão, dias antes, de celulares do presidente da Câmara Federal, Eduardo Cunha. Há outros, entretanto, igualmente importantes, porém pouco perceptíveis a olho nu.
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Essa ponta visível do fenômeno social - e que boa parte de nós percebe mais rapidamente -, encobre, de certa forma, a emergência de novos usos das tecnologias e práticas sociais bastante sofisticadas alimentadas pela inteligência conectada. Elas apontam para uma mudança no comportamento do usuário de Internet que é muito mais profunda e difícil de capturar: o aprendizado coletivo que se dá através das redes em meio a episódios traumáticos como o disparado na madrugada de quinta-feira.
A notícia da suspensão do WhatsApp no Brasil surpreendeu Mark Zuckerberg, que pagou US$ 22 bilhões em 2014 pelos mais de 600 milhões de usuários do serviço à época. Só no Brasil, a estimativa é que a medida inédita tenha afetado 100 milhões de pessoas. Zuckerberg interrompeu sua licença-paternidade em meio à madrugada californiana para dizer que o Brasil é um importante aliado na criação de uma Internet aberta e reforçar sua crença na reversão da medida. O CEO do WhatApp, Jan Koum, foi ainda mais duro e classificou a medida como míope.
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Um dos argumentos da empresa ao não atender o pedido para fornecer informações de supostos diálogos criminosos entre usuários é que ela estava protegendo dados pessoais e, nas palavras de Zuckerberg, isso não "poderia resultar na punição de todos os usuários brasileiros do WhatsApp pela decisão extrema de um único juiz". A judicialização do caso, que vem na esteira de ações similares contra o próprio serviço ainda em 2015 e cujo caso mais emblemático é o embate Daniela Cicarelli vs Youtube, mostra o quão desconectado está o judiciário brasileiro da fronteira das tecnologias que se convertem em meios de comunicação.
A discussão ganhou contornos políticos e fez uma nova vítima quando grupos conservadores apontaram a aprovação do Marco Civil da Internet como um dos responsáveis pela interrupção do serviço. Dos possíveis prejudicados com a decisão, ele foi a principal vítima de todo o processo. Vanguarda no mundo, a regulamentação brasileira vai em sentido oposto à determinação judicial porque o pedido juíza da 1ª Vara Criminal de São Bernardo, Sandra Marques, fere um dos princípios mais caros da rede: a garantia da neutralidade da rede.
Em linguagem comum, o Marco Civil estabelece que qualquer dado deva transitar pela Internet de forma neutra e ser entregue pelos operadores do sistema aos usuários de forma igualitária e isonômica. Tecnicamente, a legislação soa como uma proibição às operadoras de telefonia que incentivam a troca de pacotes de dados de texto (como SMSs e WhatsApp), em vez de áudio e vídeo (possível também no Whatsapp), porque os primeiros demandam menos investimento em infraestrutura. Em razão disso, companhias que oferecem WhatsApp gratuito em seus planos de comercialização claramente atentam contra o Marco Civil porque privilegiam um tipo de pacote de dados e um tipo de serviço sobre a rede (OTT, over the top, em inglês).
Bloqueio do WhatsApp reacende pressão das operadoras por regulamentação do serviço
Entretanto, a questão não é meramente técnica: uma vez que se permita que dados de texto sejam entregues mais rapidamente que os de vídeo, por exemplo (em clara quebra da neutralidade da rede), está aberta a porteira para que o conteúdo dos pacotes de dados seja também classificado. E aí a brincadeira começa a ficar bem perigosa, porque é o primeiro passo para consolidar um processo estatal ou paraestatal de vigilância sobre nossas conversas dentro da rede. E a ficção já tratou de nos brindar fartamente com alegorias de regimes totalitários que fazem uso deste expediente.
Em meio à cena do crime com o cadáver do Marco Civil tombado, indícios apontam para uma natural propensão brasileira a desenvolver tecnologias sociais de bypass. Em disputa de popularidade com os memes, tutoriais sobre como hackear o WhatsApp utilizando VPNs proliferaram pelo Facebook e Twitter. Configurações de servidores, IPs e protocolos de transferência de arquivos viraram trend topics de uma hora para outra e invadiram o inbox dos usuários. Ainda no começo da manhã, vários WhatsAppers fizeram prints de suas telas comemorando o sucesso da operação e disseminando o passo a passo para restabelecer a comunicação com seus amigos - um caminho sempre mais rápido que o da Justiça.
Abstinência provoca ansiedade entre usuários do WhatsApp
Este conhecimento emergente é típico de usuários que, muito além de um uso instrumental da tecnologia, se abastecem do conhecimento especializado para oferecer um certo tipo de resistência cívica. Ou de desobediência civil. Há, claramente, uma apropriação forte destas tecnologias que vão se transformando em novos meios de comunicação a partir de tensionamentos e práticas sociais que se constroem do individual para o coletivo, e que se disseminam em redes. E aqui se insere um aplauso para a cultura hacker.
Se por um lado a prática de acesso ao WhatsApp via VPNs mostra uma certa despreocupação e, talvez, até desleixo com a segurança dos dados pessoais - justamente a justificativa dada por Zuckerberg para não quebrar o sigilo dos envolvidos na investigação -, de outro aponta para a capacidade de invenção e improviso que o brasileiro possui naturalmente. A inovação ocorre em ambientes favoráveis ao uso intensivo de determinados atributos sociais, até que se descubra uma nova forma de utilização, fazendo com que a fronteira da tecnologia e da comunicação possa ser movida um pouco mais para a frente.
E este processo não é tão simples, ou visível, de se perceber quanto aquela ponta iceberguiana dos memes.