Ao ser conduzido para a direção de uma blitz, Bráulio Escobar pensou que transportava como passageiro um agente de trânsito que iria multá-lo e apreender o New Fiesta que dirigia pelo aplicativo Uber. Quando um segundo homem embarcou no veículo e pediu que buscasse um terceiro sem fornecer qualquer endereço, o motorista teve certeza de se tratar de um assalto. No momento em que chegou ao estacionamento do supermercado Carrefour, na Avenida Bento Gonçalves, acreditou estar a salvo. Descobriu que a realidade doeria mais do que as hipóteses que cogitara: ele havia caído em uma armadilha organizada por taxistas.
- Calculei que ali seria meu local de segurança. Jamais imaginei que fosse apanhar ali, Literalmente, aprendi apanhando - disse.
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Bráulio conversou com ZH sobre a agressão que personificou o debate travado entre táxi e Uber em Porto Alegre na manhã seguinte ao fato. Por mais de uma hora, sentado no sofá de casa, traçou o que aconteceu entre as 17h05min (horário em que pegou um passageiro que, depois, se transformou em seu agressor) até as 3h (quando deixou o Palácio da Polícia após prestar depoimento). Diz que sobreviveu graças à intervenção de três senhoras que se colocaram entre ele e os 12 taxistas que desferiram chutes, pontapés e garrafadas, mas, repetidas vezes, ressaltou que o grupo não representa a categoria.
Ele ainda não havia dormido: com risco de derrame cerebral, só poderia pregar os olhos depois das 18h desta sexta-feira. Foi diagnosticado com traumatismo craniano e sofreu fraturas no maxilar e no braço direito.
Bráulio morou quase 20 anos longe de Porto Alegre. Viveu em Lisboa, Helsinque, Milão, Florianópolis, Rio de Janeiro, São Paulo e Londres (cidade onde conheceu o aplicativo Uber). Retornou para a Capital há cinco anos, onde ocupou somente vagas temporárias. Cadastrado no Uber em Porto Alegre e na capital paulista, se animou com a possibilidade de um trabalho novo ao visualizar uma mensagem no celular: o aplicativo estava selecionando motoristas.
Desde o início de 2014, possuía, guardado na garagem, um carro que atende às exigências da empresa. Um ano e meio depois, o veículo está destruído e recolhido pela polícia para perícia.
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- Eu não estava prejudicando ninguém. Estava trabalhando. Não maltratei ninguém, não agredi ninguém. É uma discussão que não compete a um taxista exercer, julgar ou, pior ainda, condenar e efetuar a pena - desabafa.
Confira, abaixo, a entrevista:
Quando o senhor se cadastrou no Uber, já sabia que o serviço começaria a operar em Porto Alegre?
Eles mandam um aviso de que vão inaugurar e de que as inscrições estão abertas, e você preenche a documentação, um tanto quanto extensa. Existe uma ficha corrida de nível federal, uma de nível estadual, a apresentação da carteira de motorista com a indicação de que exerce atividade remunerada e, depois, a apresentação e avaliação do veículo.
Como está seu carro hoje?
Uma sucata. Ele foi destruído. Acabou. Eu não consegui reconhecê-lo. Talvez, os pneus estejam intactos. Não existe uma parte da lataria do carro que esteja intacta. Pelo menos, que eu tenha visto. É agonizante.
O que deixou o carro assim?
Doze pessoas que, infelizmente, trabalham como taxistas, mas não são taxistas. Talvez não sejam nem seres humanos que, de uma maneira barbárica, resolveram fazer uma espécie de justiça com as próprias mãos. Deu nisso. E meu carro virou o que virou. Foram essas pessoas que fizeram, infelizmente, uma vergonha para a classe dos taxistas, que é uma classe que trabalha muito, que tem muita gente idônea e gente de respeito. Mas que, infelizmente, amanheceu em um dia negro e carregada de uma vergonha. Talvez não seja nem vergonha deles. Eu recebi mensagens de taxistas e disse para todos eles que eles não devem se desculpar. Eu sei que eles não fizeram e eu sei que não é da índole dos taxistas de Porto Alegre, dos gaúchos, fazer uma coisa dessas. Nós, gaúchos, somos um povo que luta, não um povo que briga.
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O que aconteceu a partir das 17h da tarde de quinta-feira?
Fui chamado por um passageiro que queria que eu fosse buscá-lo na Avenida Cristóvão Colombo. Esse passageiro, entrando no carro, começou a se comportar de maneira diferente dos outros passageiros que estou acostumado a pegar no Uber. Não demonstrou interesse nenhum pela plataforma, não quis saber como funcionava, não quis dar o endereço de destino e disse que precisava buscar duas pessoas para trabalhar à noite. Sem dar endereço, pediu que eu pegasse a Avenida Protásio Alves e fosse até Viamão. Peguei a avenida, sabendo que, na esquina com a Avenida do Forte, havia uma blitz. O passageiro insistiu que não havia. Chegando perto da blitz, insistiu que eu chegasse perto da blitz, que as pessoas que eu iria pegar estavam na esquina da blitz, que estavam com muito peso para sair dali. Eu comecei a desconfiar que poderia ser, como foi anunciado pela EPTC, agentes chamando os carros. Pensei que não teria escapatória e fui para a blitz. Para o meu azar, a blitz tinha acabado. Chegamos na esquina e não eram dois, era um passageiro, e ele não tinha carro nenhum. Pediram, então, que eu fosse para o bairro Partenon, perto do Carrefour da (avenida) Bento Gonçalves. Foi onde eu comecei a desconfiar que, talvez, fosse um assalto, mas fui porque, na hora do pico do trânsito, sem viaturas passando por perto, com medo, fingi que não estava entendendo e continuei andando para não despertar a desconfiança neles.
De novo, a questão de "vamos buscar uma terceira pessoa, mas não sei o endereço". Não quis dar o nome da rua, depois não quis dar o número. Achamos meio que na sorte um fim de rua atravessando a Bento Gonçalves, um beco, e a pessoa não quis embarcar no carro. Foi onde eu cheguei à conclusão absoluta de que seria assaltado, sequestrado ou espancado. Ali, eu já tinha a certeza absoluta de que alguma coisa estava errada. Terminada a discussão de quem entra e quem não entra no carro, o primeiro passageiro disse para irmos ao supermercado Carrefour para comprar carne para um churrasco. Mas eles estavam indo trabalhar. De novo, me fiz de idiota, não iria discutir. Até dei uma alfinetada perguntando se eles não iriam trabalhar, eles se perderam completamente. Acreditando que no estacionamento do supermercado eu teria uma chance de fuga, eu fui. Chegando lá, eles abriram as portas traseiras, desembarcaram, não fecharam completamente as portas traseiras, e já veio a multidão de taxistas querendo abrir as portas do meu carro, chutando o para-choque. Um deles entrou com meio corpo no carro, pegou o volante e, com o pé, tentou pisar na embreagem. Mas o meu carro é automático. Com medo, pisei no acelerador para ele cair de dentro do carro. Ele não caiu, puxou o volante em direção aos carros que estavam estacionados, ou seja, era para acidentar o carro mesmo, e acabamos batendo em uma pilastra. E foi onde começou a agressão. Eles abriram as quatro portas do carro, me agrediram com socos e pontapés, abriram o porta-malas, tiraram o cooler com águas e bateram em mim com as garrafas de água, com a tampa do cooler. Bateram com guarda-chuvas que levo no carro para pegar os passageiros em dias de chuva. E a multidão começou a se aglomerar em volta do carro. Havia três senhoras que estavam assistindo e, de repente, resolveram se colocar entre o meu carro e os taxistas. Na realidade, foram senhoras que salvaram a minha vida, porque tenho certeza de que iria apanhar até morrer. Ouvi isso da boca deles.
O que o senhor ouviu dessas pessoas que lhe agrediram?
Um discurso tão repetitivo, tão cansativo. Que sou clandestino, que estou tirando leite da boca dos filhos dos taxistas, que trabalho em uma empresa multinacional que leva milhões para fora. Gente da tua laia tem de morrer. Não existe regulamentação, vocês são uns criminosos, só matando para se resolver o problema de vocês. Foram coisas que escutei diversas vezes entre chutes e pontapés. E nunca mais vou conseguir encarar essa frase da mesma forma: "Está achando que isso aqui é terra de ninguém, mas não é". Isso eu ouvi umas três vezes. Fica nojento, indigesto, escutar uma coisa assim. A terra de ninguém estava ali. Eu estava dentro da terra de ninguém, estava vivendo a terra de ninguém em seu ápice. Dentro de um estacionamento particular, de um supermercado, que tem câmeras, sendo agredido por permissionários de um serviço público que, em tese, são pessoas idôneas, ou deveriam ser. Isso é o cúmulo da terra sem lei.
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Passada a experiência que o senhor enfrentou, acha que está perigoso dirigir um carro para o Uber?
Não. Na verdade, foi uma agressão em 125 corridas que fiz nos últimos 10 dias. Talvez, o risco do Uber seja o mesmo de um assalto, de um acidente de carro. Aconteceu, é chocante, bárbaro, criminoso, mas aconteceram poucas vezes na infinidade de corridas que o Uber faz nas cidades onde atua. Acho que isso não qualifica o serviço como perigoso. Tenho certeza de que o meu "sequestrador" foi muito bem tratado antes de fazer o que fez. Ele recebeu balinhas, ganhou água, pôde escolher a rádio, ganhou carregador de celular, fez o trajeto que quis. Disso eu tenho certeza.
O senhor se tornou um símbolo da discussão entre táxi e Uber. Como se sente?É uma responsabilidade. Fica na minha responsabilidade o futuro de sei lá quantos mil motoristas que o Uber têm no Brasil hoje. Acho que consegui uma voz que o Uber não tinha no Brasil antes junto a autoridades e à comunidade. Me sinto um padroeiro dos motoristas e aceito o desafio. O que eu puder fazer para colocar essa discussão em um trilho de civilidade e trazer uma solução plausível que mantenha a livre concorrência e que as pessoas possam optar por um serviço... eu estou abraçando a causa.
Não terá medo de voltar a dirigir nas ruas?
Não. Quem fez isso foi uma minoria, não é a classe taxista toda. Inclusive acredito que, pelas mensagens que recebi, é muito provável que eu volte para a rua e acabe cumprimentando os taxistas. Acho que finalmente vamos ter aquilo que era esperado de concorrentes. Vamos poder dar risadas juntos nas ruas da cidade. Cada um pegando seus passageiros, fazendo o seu trabalho, atuando em paralelo e servindo à cidade. E não a interesse de meia dúzia. Eu não tenho medo.
Vereadores aprovaram a proibição do Uber em Porto Alegre. O diretor-presidente da EPTC, Vanderlei Cappellari, considera o Uber um transporte clandestino. E o prefeito José Fortunati disse que a Capital não é terra de ninguém, e, por isso, o aplicativo não poderia operar fora da lei. O senhor gostaria de dar um recado a eles?
Vamos civilizar a conversa, deixar os discursos inflamados de lado, atuar como pessoas adultas e civilizadas. Vamos atuar politicamente e não tão emocionalmente. Acredito que o discurso inflamado... Está aqui o resultado. Vamos parar de aquecer os ânimos, procurar o diálogo. Se o diretor-presidente da EPTC acha que o transporte é clandestino e quer fiscalizar, ele é bem-vindo a fazer o trabalho dele. Ao prefeito, me desculpe, mas a terra de ninguém está aí. Eu estive lá ontem e espero que ele não venha a conhecê-la nunca. Acabou. Foi. Mais baixo do que isso não precisa, não tem por que. Vamos atuar em prol da cidade. Tem uma população inteira querendo o Uber, tem uma população inteira que ama táxi. Deixa as pessoas. Temos Grêmio e Inter. Por que não podemos ter Uber e táxi? Um Estado que se orgulha do Gre-Nal não pode se orgulhar do táxi e do Uber? Não poderia ser o primeiro a fazer as pazes.
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Os dois taxistas presos em flagrante foram autuados por tentativa de homicídio. O senhor acha que eles queriam lhe matar?
Se eles dizem que uma raça como a minha tem de morrer... Nenhum deles disse que era brincadeira. O discurso era inflamado. Para mim, estava muito óbvio e, se não fosse a multidão que se colocou entre os taxistas, a começar pelas três senhoras, cujos nomes eu não sei, e a multidão que seguiu essas pessoas... Provavelmente, eu não estaria aqui.
* Zero Hora