Além da violência nas falas e atos dos que apoiam agrupamentos instalados no poder, existe o desejo geral de chegar aos postos (cabos eleitorais) e assessorias (acadêmicos de joelho mole). A senda é atapetada pelo favor recíproco. "Se eu te ajudo na eleição, me ajudas a melhorar a despesa mensal." Favor e lisonja corroem ideais de revolução ou reforma, alardeados antes da ida aos palácios. Segundo Norberto Bobbio, nas praças reina o radicalismo, nos palácios os favores. Tal costume vem da Grécia e a versão clássica surge em Roma, com a clientela. O Brasil é a terra daquele hábito. Político eficaz, aqui, ajuda parentes, amigos e inimigos, garantindo apoio nos apuros. Vejam o caso Sarney: declarado inimigo por Luis Inácio da Silva e Fernando Collor, aquele suporte do regime ditatorial conseguiu, graças aos favores, manter seu poderio e superar instantes de fraqueza. Quando usou helicóptero destinado à saúde pública em convescotes particulares, Luis Inácio da Silva o socorreu e proibiu os críticos: "Sarney é homem incomum". Na época, recordei em artigo que numa república todos são comuns. Mas a nossa terra não é república, diria o Padre Vieira. Mas o campeonato internacional da corrupção e favor não é brasileiro.
O favor vigora no sistema parlamentar e partidário em horizontes mundiais. Jens Ivo Engels, especialista na análise da ladroagem estatal, indica o favor praticado pelos partidos. Em 1842, na Inglaterra, militantes do Partido Conservador enviam carta a Thomas Fremantle, chefe da agremiação. Conteúdo da missiva: visto que os Tories ganharam as eleições, os seus militantes deveriam receber empregos, uma vez que os perdedores também usaram a prerrogativa: "government patronage was profusely showered on any Elector who exhibited democratic principles" ("o patrocínio do governo foi profusamente derramado sobre qualquer eleitor que tenha exibido princípios democráticos") dizia a cartinha. Surge o apadrinhamento político dos cargos. Wolfgang Sofsky chama a coisa de "Organisations patronage". Trata-se de invenção adequada à sociedade de massas e ao modo pelo qual ela é conduzida em eleições com partidos burocratizados. Neles, dirigentes trocam benesses com apoiadores. "Os clientes (os militantes) devem garantir ao partido aprovação e apoio. Em troca, são recompensados com recursos de emprego ou bens materiais" (Jens Ivo Engels). O sinal distintivo do apadrinhamento organizacional "não é o sumiço do patrão como pessoa: mudou a fonte dos recursos de apadrinhamento. Eles provêm doravante do organismo político, e não mais das fortunas pessoais das famílias ou padrinhos".
Na República de Weimar, a social-democracia usou o método para empregar militantes. Pertencer ao partido era a senha para receber cargos. O apadrinhamento segue o controle das direções partidárias. Na era do Front Populaire francês, a indicação para os cargos pertencia à Central Geral dos Trabalhadores. Os contratos públicos eram feitos com firmas das cooperativas de trabalhadores. Oferecer um posto nas empresas, privadas ou públicas, foi meio eficaz de recrutamento e fidelização. Nazistas e comunistas não inovam o apadrinhamento partidário. Os adeptos de Hitler inventaram um jeito de afastar adesões tardias: só indicavam para os cargos os filiados de número anterior a 100 mil
Os dirigentes eleitos ou com influência sobre os eleitos são presos aos militantes que exigem emprego e benesses como prêmio pela fidelidade. Os empresários fornecem meios e ocupação aos militantes para que seus interesses sejam defendidos no governo. Temos a nova ordem do pacto corrupto. Oligárquicos, os líderes mantêm uma dupla fidelização dos militantes: nas empresas privadas e na administração oficial. A ordem é aprofundar a força do partido para que ele vença eleições, o que garante os clientes, empresários ou trabalhadores.
Manter a máquina exige muito dos cofres públicos e das empresas, privadas ou governamentais. As leis são um obstáculo e se tornam "invisíveis"para os políticos, empresários, militantes. O apadrinhamento do partido se firma como ética, postura automática. Tal é o código "realista" que burla a norma em nome dos interesses ideológicos ou do "progresso econômico geral". E chegamos ao abismo hoje enfrentado por todos nós, favorecidos ou desfavorecidos no mercadejo do favor. Para análise mais extensa, remeto a um texto meu, no livro editado pelo Conselho Nacional de Justiça: Rui Stocco e Janaína Penalva: Dez anos de Reforma do Judiciário e o Nascimento do Conselho Nacional de Justiça (Revista dos Tribunais, Thomson Reuters, 2015).
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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