Os ataques a pessoas, calúnias e deboche, infelizmente comuns em nossa crise brasileira, mostram um hábito não raro próximo das sarjetas. As pessoas usam termos infamantes contra os adversários e imaginam que a sua alma própria permanece íntegra, alva, ilesa diante das sujeiras que, por definição, só podem ser alheias. Assim, um tolo que se julga cultivado, lúcido, sapiente, não hesita em usar na internet termos da mais completa abjeção, o que evidencia hábitos próprios das latrinas mentais e não costumes presos à elevação espiritual.
Uma palavra que encontramos com frequência nos sites, mantidos por blogueiros empenhados - recuso o vocábulo gálico "engajado", pedante como poucos - à esquerda ou à direita, é "apedeuta". Escritores canhestros chegam a imaginar que o termo foi cunhado ontem e serve apenas para os seus inimigos. Se o frequentador dos blogues e "redes sociais" - dada a falta de escrúpulos naqueles espaços, "rede social" é oxímoro desagradável - quer destruir a honra de alguém, entre os seus palavrões vem sempre a palavrinha suja, "apedeuta". Dirigida contra os petistas, ela marca o desprezo contra Luis Inácio da Silva. Este último, não diplomado por escolas prestigiosas, jamais poderia ter chegado à presidência. Durante a campanha que elegeu aquele político, estava eu na fila do café no aeroporto de Cumbica. De repente, um comandante de avião berra: "Cometeram um atentado contra o Lula". Após saborear a surpresa geral, ele completou: "Jogaram um Aurélio na sua cabeça!". Indignado, repliquei: "Sim, ocorreu um atentado, porque o Aurélio é dicionário excelente apenas para pessoas sem cultura rigorosa". Quase fui linchado e precisei dizer adeus ao café. Segui para o embarque sob apupos. Talvez tenha sido injusto com o "pai dos burros". Mas aceitar preconceito disfarçado de cultura superior é impossível para mim. Tempos depois, vieram as vaias da esquadria petista que me assacou os piores designativos em termos profissionais. Ir contra os carneiros da massa é perigoso. Que o diga o bom Flavio de Carvalho quando ousou ir em sentido contrário ao das procissões
Outro dia comprei um computador. Na hora do pagamento, pergunto ao funcionário: "Posso pagar com o cartão Diners ?". A resposta veio de imediato: "Com Diners, não, mas com Dainers, sim". Após dois minutos, diz o mesmo indivíduo: "Para finalizar a compra, basta que o senhor coloque sua rúbrica na nota". Digo então: "Se o senhor gosta de corrigir a pronúncia de palavras estrangeiras, deve conhecer a da sua língua pátria. Não é rúbrica, caro senhor, mas rubrííca" (exegero o acento apenas para sublinhar). E finalizei: "Na França, país de cultura elevada, ocorre o orgulho de pronunciar termos estrangeiros com o espírito do francês. Assim, o nosso querido Baden Powell, é ali conhecido como Badên Povel e assim por diante". Sorriso tolo nos lábios, o mocinho nem desculpas pediu. Aliás, se pedisse, diria "desculpa", usando o "tu" em lugar do vós, subvertendo como as socialites apedeutas a língua que herdamos dos portugueses.
Apedeuta, senhores que adoram desprezar os supostos inimigos, brasileiros como vocês, liga-se ao grego "apaideusia", o negativo da "paideia", cultura, ensino. A palavra é anterior a Platão e Aristóteles. Ela conota a ausência de sociabilidade, falta de finura e gentileza. Um indivíduo que respira apaideusia não trata bem amigos ou inimigos, ignora polidez e civilidade. O adoecido assim é casca grossa que tem na boca, perenemente, palavrões e ataques à honra alheia. Em Platão, o termo explica a pessoas sem caráter, que não conseguem refrear a lingua ou desejos. Ou seja, a palavra incluiria hoje todos os militantes enceguecidos pela ideologia nas "redes sociais", à esquerda ou à direita.
Ao ceder diante dos baixos instintos, praticar ataques sujos contra adversários, os sujeitos estão sob o duro império da apaideusia. Boas maneiras não significam medo do adversário, mas controle da própria língua, honesto convívio civil. É de algo assim que sentimos falta em nossa pátria comum. Sem ela, seguimos para a barbárie na qual todos os golpes são possíveis e quando o homem é plenamente lobo do homem.
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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