Havia ironia no sorriso da enfermeira:
- Quer dizer que você não transou? Foi transada? - alfinetou a funcionária do hospital.
Júlia* nem respondeu, continuou chorando. Percebeu que a sucessão de constrangimentos tinha voltado com o atraso da menstruação. Duas semanas antes, ainda sem suspeitar da gravidez, ela já ouvira perguntas ásperas em um posto de saúde no centro de Porto Alegre:
- Não desconfiou de nada? E como é que o cara foi parar na sua casa?
Depois de um mês de sabatinas, exames e consultas, a estudante da PUCRS pôde enfim abortar o fruto da violência que sofrera na própria cama, em agosto passado. O Código Penal permite a interrupção da gravidez em casos de estupro.
- Mas parecia que eu precisava, o tempo todo, provar que não tinha cometido um crime - relembra Júlia, 21 anos, vítima de um homem que a violentou após sedá-la na saída de uma festa, no bairro Cidade Baixa.
O caso ilustra bem a burocracia - e a corrosão emocional - que antecede um aborto legal no país: Júlia redigiu um termo circunstanciado relatando o estupro; passou por um ultrassom para checar se o tempo de gestação batia com a data do ataque; assinou uma advertência que mencionava os crimes de falsidade ideológica e aborto ilegal na hipótese de mentira; viu quatro membros da equipe médica subscreverem uma ata atestando sua versão; e, por último, declarou ter ciência de que poderia manter a gravidez se quisesse.
São documentos obrigatórios, regrados pela portaria 1.508/2005 do Ministério da Saúde.
- É uma demanda pesadíssima. A paciente passa pelo menos duas vezes por cada membro da equipe, formada por médico, psicólogo, assistente social, enfermeiro - conta a ginecologista-obstetra Sandra Scalco, do Hospital Materno-Infantil Presidente Vargas, referência em aborto legal na capital gaúcha.
Na semana passada, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou um projeto do deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ) que acrescenta ainda mais etapas ao calvário da mulher violada. Para realizar o aborto em caso de estupro, ela precisará registrar ocorrência na polícia e passar por exame de corpo de delito. O procedimento já é cumprido na maior parte dos casos, garante a obstetra Sandra Scalco, mas torná-lo obrigatório "só dificulta o acesso da mulher a um direito que é seu".
- Algumas vítimas têm muito medo de denunciar o violador: ele pode ser o chefe do tráfico na comunidade onde ela mora. Pode ser inclusive um agente da segurança pública - afirma o obstetra Cristião Rosas, coordenador do Serviço de Atenção a Vítimas de Violência Sexual do Hospital de Vila Nova Cachoeirinha, de São Paulo.
- Nós sempre estimulamos a mulher a registrar ocorrência, afinal ela sofreu um crime hediondo, mas é uma decisão que precisa ser dela.
Relator do projeto na CCJ, o deputado federal Evandro Gussi (PV-SP) afirma que "o estupro é um crime, e crimes precisam ser provados".
Ao exigir o registro de ocorrência e o exame de corpo de delito, segundo ele, o projeto evitaria que mulheres inventassem estupros para conseguir abortar.
- A palavra da mulher é uma das provas. Mas não posso concordar que seja a prova única e inequívoca - diz o deputado, ressaltando que o projeto contribui para a punição do agressor por envolver sempre a polícia.
O obstetra Cristião Rosas lembra que, em 2013, o sistema de saúde brasileiro registrou apenas 1,5 mil casos de aborto legal em todo o país. Já o número de procedimentos clandestinos no mesmo ano, conforme estudo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), superou a marca de 850 mil.
- Se as mulheres mentissem como eles pensam que mentem, os poucos hospitais que fazem aborto legal no país teriam filas dobrando o quarteirão - analisa o médico paulista.
Ele avalia que o projeto reforça um ambiente de preconceito no qual há sempre uma desconfiança implícita na palavra da mulher - inclusive quando ela sofre uma violência tão extrema como o estupro. Júlia, a estudante violentada que abortou, concorda:
- Quando alguém parecia duvidar de mim, eu ficava arrasada. Só queria esconder aquilo de todo mundo para sempre. Eu me sentia culpada, achava que podia ter evitado aquilo.
Outro ponto controverso da proposta permite que qualquer profissional ou instituição de saúde se recuse a receitar medicamento ou realizar procedimento que considere abortivo. É a chamada objeção de consciência, já prevista na Constituição.
- O problema é incluírem as instituições de saúde no texto. Um médico, claro, tem o direito a se negar, mas o hospital tem a obrigação de oferecer uma alternativa para a mulher violentada, que também tem direitos - diz a ginecologista-obstetra Sandra Scalco. - Senão, daqui a pouco, a vítima vai sair batendo de porta em porta, os hospitais vão recusando, aí os abortos clandestinos crescem e as mortes também.
Favorável ao projeto, a professora Lenise Garcia, do Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB), afirma que hospitais católicos e evangélicos, comuns na rede brasileira de saúde, são contrários ao aborto e teriam o direito, inclusive, de recusar-se a receitar a pílula do dia seguinte na hipótese de o projeto prosperar.
- Hoje, a prescrição da pílula em casos de estupro é obrigatória. O texto corrige esse problema: é democrático que instituições estruturadas dentro de filosofias contrárias ao medicamento se recusem a ministrá-lo.
Júlia comenta com duas frases:
- Depois do estupro, fiquei tão em choque que nem lembrei da pílula. Mas, se a tivesse tomado, teria evitado boa parte do trauma que permanece comigo.
A persistência da violência
Na esição especial deste final de semana, o PrOA ouviu pesquisadores e especialistas para discutir a perene violência contra a mulher e mostra que abuso e ameaça começam cedo e para muitas, em um vídeo com relatos de jornalistas de ZH. Confira no especial abaixo: