Um problema grave da ética está em buscar justiça na atribuição de cargos profissionais, a eles concedendo promoções e remuneração adequada. Em termos vulgares, apelamos para a meritocracia ou decisões políticas na escolha dos candidatos aos postos. Oceanos de tinta foram gastos para definir o que é "mérito" ou "talento" no trabalho coletivo. Ao contrário de muitas pessoas que se julgam marxistas, Karl Marx não defendeu o princípio absoluto da igualdade como pressuposto dos salários. Basta consultar o clássico Crítica do Programa de Gotha para entender a noção por ele exposta.
É próprio do direito burguês igualar - para fins jurídicos e cálculo econômico - os indivíduos, colocando-os sob uma rubrica geral "igualitária". Assim, Pedro deixa de ser Pedro: ele é submetido à etiqueta de "operário", "professor", "jornalista", etc. O direito igual, em vez de ordenar justamente a prática da sociedade, a transforma num amontoado de siglas abstratas que englobam a todos e a nenhum dos seus integrantes. Além de operário, Pedro pode ser artista, antropólogo, músico etc. É a utopia perseguida pelo jovem Marx na educação dos cinco sentidos humanos, contra a disciplina rígida que impera no ensino técnico ou humanístico, as nefastas "especialidades". Alentado pelo ideal romântico da sinestesia, ele também almeja a reversível equivalência de nossos sentidos, o que nos elevaria à humanidade íntegra, não esfacelada pela divisão do trabalho. Voltemos ao direito igualitário e abstrato.
"Alguns indivíduos", diz Marx na Crítica ao Programa de Gotha, "são superiores, física e intelectualmente a outros ao mesmo tempo que prestam trabalho, ou podem trabalhar mais tempo; e o trabalho, para servir de medida, deve ser determinado quanto à duração ou intensidade; de outro modo, deixa de ser uma medida. Este direito igual é um direito desigual para trabalho desigual. Não reconhece nenhum distinção de classe, porque aqui cada indivíduo não é mais do que um trabalhador como os demais; mas reconhece, tacitamente, como outros tantos privilégios naturais, as desiguais aptidões dos indivíduos, a desigual capacidade de rendimento. No fundo, como todo direito, ele é o direito da desigualdade. O direito só consiste, por natureza, na aplicação de uma medida igual; mas os indivíduos desiguais (
) só podem ser medidos pela mesma medida sempre e quando considerados sob um ponto de vista igual, um aspecto determinado; por exemplo (
) só como operários, e não se veja neles nada mais, prescinda-se de todo o restante. Uns operários são casados e outros não; uns têm mais filhos que outros, etc., Para igual trabalho (
) , uns obtêm de fato mais do que outros, uns são mais ricos do que outros, etc. Para evitar tais inconvenientes, o direito não teria que ser igual, mas desigual".
Como se nota, em termos éticos e políticos, o direito igual está longe de constituir algo certo, sempre infalível. Marx seria contra a igualdade? Não, com certeza. Mas ele recusa a retórica jurídica abstrata que elimina as individualidades com seus méritos e problemas. Sua tese está nos antípodas de Cálicles, o vilão desenhado em texto platônico. Para o sofista, "é justo que o superior domine sobre o que vale menos, e o que tem capacidades superiores, sobre o desprovido de talentos" (Górgias, 483 d - e). Esta última doutrina encharca os slogans do darwinismo social que nos assola. Mas dela não podemos fugir com argumentos frágeis como o da igualdade abstrata. A busca da justiça é mais trabalhosa do que imaginamos. Como diz Sócrates, a justiça é um bicho arredio escondido sob as moitas. Ela pode escapar pelas nossas pernas nos deixando as mão vazias e os ouvidos cheios de barulho, como numa fábula que nada significa.
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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