A eficácia do Estado pode ser observada nas taxas de insegurança ou garantias de vida para os cidadãos. Se diminuem as mortes e as vinganças, o poder guarda legítima governabilidade. Caso oposto, ele é apenas um inerte mecanismo. Sigamos a política maquiavélica na qual se proíbe que um ente particular, seita ou quadrilha, desafie a lei. Sem tal requisito, os cidadãos entregam-se aos grupos capazes de, pelo ressentimento, golpear a forma republicana. Surgem daí os golpes de Estado. Estes últimos não precisam seguir o modelo da intervenção militar.
Golpes podem ser "apenas" palacianos. Mas sua eficácia no desmantelamento do espaço público não é menor. "A força para se conservar é o único e primeiro fundamento da virtude", diz Spinoza. Se a base da vida social reside na conservação da existência, o Estado só pode ser mantido se garante aquela cláusula. Exigir que os cidadãos submetam-se à polícia e ao exército, acatem leis e paguem impostos sem lhes garantir segurança física, cultural, política, é irrealista, pois significa negar o direito na sua fonte. No Tratado Político, Spinoza diz que Maquiavel é um homem "acutissimus, sapiens, prudentissimus". Os dois primeiros termos têm vasta tradição e foram valorizados na modernidade. O terceiro retoma a crônica política que, dos gregos à Renascença, determinou as doutrinas "maquiavélicas". Vejam o trecho spinozano: "Para um príncipe só dirigido pela paixão de domínio, quais são os meios de conservar e fortalecer seu governo? É o que mostrou exaustivamente o agudíssimo Maquiavel; mas qual seria o alvo de seu livro? Tal coisa não se mostra com clareza, ( ) se desejou aparentemente evidenciar a imprudência dos que se esforçam por suprimir um tirano, quando é impossível suprimir as causas que o tornaram tirano, pois aquelas causas tornam-se mais poderosas e despertam-lhe o medo. ( ) Maquiavel talvez tenha querido mostrar o quanto a multidão livre deve fugir de confiar a sua salvação a um homem apenas, pois este último, a menos que esteja inchado de vaidade e se acredite capaz de comprazer a todos, deve sentir medo cotidiano de armadilhas, o que o obriga a vigiar ininterruptamente pela sua própria segurança, ocupado mais em armar peças contra a multidão do que em administrar seus interesses". O tirano cuida da sua própria segurança em vez de proteger os governados, recordemos o retrato da tirania na República platônica.
Nesse parágrafo de Spinoza temos uma pletora de problemas jurídicos e políticos que definiram o Estado moderno. O Tratado Político apresenta o poder jungido à potência popular. O governante pode ser derrubado, mas o fato ameaça a vida estatal. O raciocínio spinozano sobre o afastamento do poderoso começa no § 25 e termina no § 30 do capítulo 7. Impressiona nas suas frases os assuntos intercalados entre o início e o final do raciocínio: a soldadesca, a massa vulgar, o segredo de Estado. Segundo Spinoza, as crises políticas são devidas à quebra do elo entre Estado e seu principio originário . "A causa principal de desagregação dos Estados é a que observa o agudíssimo florentino nos Discorsi Sopra La Prima Deca di Tito Livio: ao Estado como ao corpo humano se acrescenta algo que, por vezes, faz necessária uma intervenção curativa; é preciso que, por intervalos, o Estado seja reconduzido ao principio que o instituiu". Maquiavel, citado por Spinoza, assume a metáfora médica para manter a saúde da república.
A crise política é julgada pela legitimidade ou ilegitimidade do mando, e também a partir do consenso. A vida do Estado só vale na medida em que valem a vida dos que o compõem. A democracia é o único remédio eficaz contra o pavor mútuo dos indivíduos. Se um governo não tem legitimidade, é preciso que ele volte às origens do regime. Temos no Brasil, mesmo impedindo Dilma Rousseff, condições de retornar aos princípios democráticos e republicanos, se na verdade nunca os praticamos na sua plenitude? Cabe à prudência responder. Apenas afastar um governante nada resolve, pois o nuclear é o retorno à legitimidade do Estado, não de seus operadores ocasionais. Vale reler Maquiavel e Spinoza, prudentíssimos senhores.
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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