Cena do café da manhã no hotel que sedia um congresso de juristas. Falamos do espaço. O tempo? Dois anos atrás. Em mesa longe do barulho, certo professor universitário tenta deglutir o intragável alimento dado aos hóspedes. Flashback para a noite anterior no salão do evento: os profissionais do direito esquecem as leis mínimas da civilidade, abandonam os seus convidados e correm para bajular um candidato a poderoso, quase escolhido para o Supremo Tribunal Federal. Em seu discurso, o projeto de magistrado discorre sobre o quanto é importante defender o governo petista e o terrível perigo de a ele se opor. Aplausos fortes de apoio. O professor - da Unicamp - cujo discurso é crítico diante dos descalabros de todos os governos e partidos, se levanta e sai do ambiente. Mostra vergonha do que ouviu e testemunhou.
Close-up para a sala de café no hotel. Aproxima-se da mesa em que se aboleta o acadêmico... o adulador governamental da noite passada. "Parabéns mestre! Gostei muito de sua palestra!". O docente se inquieta e recorda o alerta do fulminante Diógenes, pensador cínico da Grécia: "quando sou aplaudido, revejo o que disse porque, com certeza, foi alguma tolice". Feita a anamnese da própria fala, o acadêmico se tranquiliza: tratava-se mesmo, nos lábios do conviva, daquela dissimulação que mimetiza os bons modos.
Roberto Romano: invectiva contra as idiotias
A conversa se estabelece, penosa para ambas as partes. Entre um bocado de péssimo pão de queijo e outro, as frases ondulatórias prosseguem. "Leio muito seus artigos" diz o quase poderoso. O interlocutor sofre a tentação de perguntar quais seriam os textos. Mas por prudência se cala pois a mentira emitida é por demais evidente. "E o que o senhor tem pesquisado?". A pseudologia anterior desmorona "Nos últimos 30 anos, estudo a razão de Estado". E cai a bomba: "Sim? Mas semelhante ponto é anacrônico. Ninguém mais se interessa pelo assunto!"
Delicadamente e na medida do possível, o professor indica que o tema é matéria de importantes volumes atuais. Livros e revistas especializadas a ele se dedicam com afinco, sobretudo nos últimos tempos. Potências como os EUA e a Europa sofrem crises graves de legitimidade, questões como o segredo, a espionagem, o terrorismo entram diretamente no campo da razão estatal O Brasil sofre uma inédita fratura de Estado e sociedade "Ah, bem. Talvez o senhor esteja certo! Bom dia professor! ". E o boquiaberto docente responde: "bom dia ". E imagina aquela pessoa coberta pela toga negra, tonitroando sentenças no STF, conduzida pelo governo do qual se mostrou acrítica defensora. A indicação para os postos de mando ainda hoje é assunto predileto da razão de Estado... Que perigo passamos! Um juiz do excelso pretório que imagina descartáveis as artes de Maquiavel, Richelieu, Bismarck, Churchill, De Gaule, Kennedy, Kruschev, Obama, Putin, João Paulo II, Francisco - a lista é interminável - e considera a Staatsräson sem importância para os nossos dias? O fato escandaliza qualquer mente cultivada. Eis uma prova do quanto a escolha para aquele tribunal é falha. O candidato não chegou lá, no entanto. Ufa! Desta nos livramos. Mas desde e até quando?
*Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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