* Escritor e professor da UFRGS
Dos países grandes da América, o Brasil foi o último a ter cursos superiores, e universidade digna do nome, entre nós, não chega a ter um século de vida: se precisar de uma explicação para a fragilidade do pensamento crítico no país, aí está uma, das mais fortes.
Mas nem essa circunstância impediu o aparecimento de intelectuais empenhados em entender e explicar o Brasil. Gente que, mesmo sem uma instituição a dar respaldo e tantas vezes sem nem mesmo um círculo de debates a oferecer adequado âmbito de reflexão, juntou tudo que podia - dados, preceitos, observações, teses - num texto que pretendia ajudar a viver o Brasil, este país ainda e sempre à espera de um futuro brilhante, que sempre está um pouco mais adiante, lá onde a mão ainda não alcança, lá onde a vida deve ser bem melhor do que a que vivemos aqui e agora.
O começo dessa linhagem é relativamente tardio, se comparamos o Brasil com a Argentina ou os EUA. Sarmiento, futuro presidente do país platino, escreveu e publicou na primeira metade do século 19 ensaios e memórias de grande impacto na opinião pública; no país norte-americano, Emerson e Thoreau publicam, pela mesma época, ensaios e reflexões igualmente relevantes para os conterrâneos. Já no Brasil, talvez apenas com a geração de Machado de Assis, nos anos 1870 em diante, se possa falar de pensadores com repercussão pública.
A rigor, é apenas no começo do século 20 que vamos encontrar textos capazes de golpear o metafórico rosto brasileiro. Primeira data: 1902, quando sai a edição de Os Sertões, de Euclides da Cunha, misto de relato de guerra civil com teoria da opressão contra os sertanejos miseráveis, escrito numa improvável linguagem parnasiana mas dedicado ao combate crítico.
O tempo da primeira república parece que exigia o debate. Joaquim Nabuco já tinha lançado O Abolicionismo e Minha Formação, livros nos quais a grande chaga do escravismo ocupava o centro das atenções. Manuel Bonfim apresenta em 1905 seu impressionante ensaio América Latina: Males de Origem, que inspirou nosso Simões Lopes Neto e forneceu-lhe argumentos para defender a miscigenação como o melhor caminho para o Brasil. Essa tese estava longe de ser aceita pacificamente, bastando lembrar o caso de Sílvio Romero, um pensador intenso e contraditório, que mesmo simpático ao mundo popular defendia a tese do branqueamento, em posição parecida com a de Oliveira Vianna, jurista e historiador, um eugenista.
Em qualquer dessas posições, estava em jogo o tema da formação do povo - e do nosso modo de compreender o que fazer no futuro, tendo em vista o imenso passivo acumulado com os afrobrasileiros, que mal e mal apenas no século 21 começamos a pagar, com as cotas e outros programas sociais.
SENZALAS E RAÍZES
A geração modernista tomou seu turno, renovando o debate, em escala inédita. Não foi apenas o caso de Mário de Andrade, pesquisador da cultura popular, agente político e escritor que formulou ensaios de interpretação do país. Além dele e mais do que ele, foram cientistas sociais de formação sofisticada, fora do Brasil, os maiores ensaístas. Gilberto Freyre, com Casa-Grande e Senzala (1933), e Sérgio Buarque de Holanda, com Raízes do Brasil (1936), são os dois casos mais salientes: ambos legíveis até agora, mergulharam no passado do país para diagnosticar nosso modo de ser. As generalizações de um e outro soam agora um tanto forçadas - por exemplo, Freyre querendo que todo o país fosse uma mera ampliação do mundo açucareiro - mas de todo modo envelheceram menos do que a interpretação comunista de Caio Prado Júnior, para quem o Brasil era apenas a plantation litorânea.
O Rio Grande do Sul viu nasceu um intelectual de grande alcance na mesma época: era Clodomir Vianna Moog. Pensador próximo das posições de Freyre, com viés determinista quanto às condições geográficas e climáticas, Moog não deixou de apresentar grande originalidade em ensaios como Bandeirantes e Pioneiros, extensa comparação entre a colonização do Brasil e a dos EUA.
Na geração seguinte, o pensamento crítico brasileiro encontrou maturidade em novo patamar, fruto, em grande parte, já da vida universitária moderna, inaugurada nos anos 1930. Tal é o caso de pensadores da USP. Antonio Candido, com seus estudos sobre o mundo caipira (Parceiros do Rio Bonito, 1946) e sobre o sentido construtivo da literatura no país (Formação da Literatura Brasileira, 1959), e Florestan Fernandes, entre outros menos expressivos, souberam aliar o conhecimento científico moderno com a sensibilidade para as necessidades do país.
Nesta mesma geração, que publica basicamente entre o final dos anos 1950 e os anos 1970, vamos encontrar três figuras cuja obra ecoa ainda agora. Celso Furtado, que se pode ler em suas várias obras, defende uma visão emancipacionista do Brasil, apostando que seria possível internalizar os mecanismos de controle do desenvolvimento. Darcy Ribeiro, antropólogo e ensaísta, quis ver um horizonte de integração das várias etnias que compõem o Brasil e dos vários países americanos, num otimismo que se completou com sua ação política a favor da cultura e da educação. O gaúcho Raymundo Faoro arguiu com precisão a perversão do poder no Brasil, mostrando que entre nós quem chega lá não se sente representante de nada a não ser de seus interesses pessoais.
Na mesma geração ou logo a seguir, outros nomes despontam. O geógrafo Milton Santos, que foi capaz de uma obra original no cenário acadêmico ocidental em matéria de pouca força no Brasil. Roberto Schwarz, originado na Sociologia mas com interesse em Literatura, formulou tese de ampla repercussão crítica, as "ideias fora do lugar". Fernando Henrique Cardoso, antes de sua vida política, igualmente teve destaque em sua discussão sobre os limites do desenvolvimento na periferia do sistema capitalista. (FHC, por sinal, em interessante iniciativa, apresentará uma série no Canal Brasil, em outubro, com 13 episódios que repassarão a vida e a obra de muitos desses pensadores, numa série dirigida por Bruno Barreto e com contribuição de Elio Gaspari.)
EM PRODUÇÃO
Uma visada negativa costuma pensar, ao deparar com essa nominata toda, que o presente nos privou de contar com novas contribuições, de pensadores do Brasil formados depois da ditadura militar. Não me parece que seja o caso. Sem ir ao detalhe mais específico, é não apenas possível como mesmo obrigatório reconhecer o valor de sujeitos já com obra sólida na qual se estampam vigorosas e relevantes discussões do passado e do presente brasileiros.
>>> Christian Dunker: "A nossa relação com a cidade está ruim".
>>> Luiz Eduardo Soares: "Estacionamos na Barbárie"
Do que conheço, me parece essencial enfrentar o trabalho de Contardo Caligaris, psicanalista, cujos ensaios desvendam e desmontam criticamente modos de ser e pensar do cotidiano das grandes cidades (me ocorre mencionar também outro representante do mundo psi, o autor da tese do condomínio privado como estilo de vida excludente no Brasil, Christian Dunker). No campo da sociologia, Luiz Eduardo Soares tem produzido uma leitura indispensável da violência cotidiana do país.
No debate historiográfico, há um importante grupo de novos pensadores do país, como Luiz Felipe Alencastro, Hebe Matos, Manolo Florentino e Jorge Caldeira, que têm posto do avesso algumas antigas, cômodas e equivocadas leituras do passado, especialmente no que se refere à escravidão e ao lugar dela na antiga colônia lusitana que se transformou no Brasil. Quanto ao mundo dos índios, assunto urgente para que o país repense outra dívida interna gigantesca, vários antropólogos poderiam ser citados, como Manuela Carneiro da Cunha, mas um especial parece despontar pela originalidade e grande capacidade explicativa, Eduardo Viveiros de Castro, com sua tese do "perspectivismo ameríndio". Todos vivos e em plena produção.
Esses sujeitos formulam visões sintéticas sobre a vida brasileira, e creio ser possível dizer que quase sempre em conjunturas de certo otimismo reformista. Se agora o horizonte anda turvo, nada impede de visitar esse repositório de excelentes interpretações do país, com um olho positivo posto no que o futuro ainda nos reserva.
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