* Roberto Romano é professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp. Escreve quinzenalmente.
O termo inflação, como boa parte dos vocábulos políticos, econômicos ou éticos ocidentais, tem origem na medicina. "Inflatio" significa comumente inchaço, tumor, enfizema, edema. No campo espiritual, o sujeito "inflatus" é o pavão humano cheio de ar, tolo. A medicina que honra seu nome jamais confunde os registros físicos e os morais. Ela observa os excessos da paixão que acomete o cliente e o próprio médico. Existem pacientes intratáveis, mas também médicos autoritários, incompetentes, vácuos. A razão é que ambos integram a humanidade, mistura de bom senso e loucura, simpatia e malícia, honradez e crime.
A inflação monetária - fato físico e espiritual - destrói valores. Páginas sombrias foram escritas por Elias Canetti em Massa e Poder, monumento antropológico do século 20. Ali, uma tese exige reflexão: "Pode-se afirmar que nas nossas civilizações modernas, excetuando-se as guerras e as revoluções, não existe nada que em sua envergadura seja comparável às inflações". Se o índice inflacionário na república de Weimar fosse menos grave, diz ele, milhões teriam escapado dos campos construídos pelos nazistas.
Apenas imprudentes menosprezam o fenômeno inflacionário. Um livro que amplia o pensamento de Canetti pode ser lido pelos que se empenham em direitos civis. Refiro-me ao trabalho de B. Widdig, Culture and Inflation in Weimar Germany (Berkeley, University of California Press, 2001). Ao falar do invento do zero e sua relevância no drama financeiro, Widdig afirma: "A inflação marca um derretimento catastrófico no qual os opostos do infinito crescimento e do vazio entram em colapso um no outro". Se há eficácia econômica, o zero indica acréscimo vital. Na inflação impera o zero como vazio e morte. Um trabalhador ganha milhões de salário, mas só recebe a fieira de zeros que nada garantem para sua família. Temos a base social para o niilismo totalitário. Não por acaso, o fascismo gritou na Europa, sobretudo na Espanha: "viva la muerte!". A ruptura dos laços humanos, o regresso ao animalesco, o sumiço da compaixão seguem o inchaço da moeda na dança macabra que termina em monstruosos cemitérios. Widdig mostra, índices à mão, que o fato inflacionário não foi gerado pela república de Weimar, mas o antecedeu com as despesas alemãs no primeiro conflito mundial. Nele, todo o horror que Erasmo de Rotterdam aponta nas guerras se realizou, piorado.
No Brasil, a "inflação Sarney" começa na ditadura, quando Mario Henrique Simonsen chegou ao deboche de atribuir a culpa do fenômeno ao chuchu. A inflação, como os tumores, é sintoma, não origem. O desarranjo na estrutura do corpo, biológico ou social, brota dos excessos, tolerâncias imprudentes, hábitos perniciosos à saúde.
Segundo G. Naudé, autor do primeiro livro sobre os golpes de Estado (1640) "os hábitos do intelecto são distintos dos vividos pela vontade. Os primeiros pertencem às ciências e sempre são louváveis; os segundos ligam-se às acões morais, que podem ser boas ou más". E arremata : "é lei comum que todas as coisas instituídas para um fim bom, com frequência são abusadas: a natureza não produz venenos para matar os homens, se ela fizesse tal coisa, destruiria a si mesma; a nossa malícia gera tal uso".
A trégua da inflação brasileira, algo bom, elegeu no entanto presidentes populistas, esmagou a oposição, gerou servilismo de intelectuais e universitários, garantiu a lisonja jornalística ao poder. Ela anestesiou as massas. Com o retorno do descontrole monetário vem o ódio que dissolve amizade e companheirismo em todos os setores e partidos. O ético não deriva do econômico, mas dele não escapa. Cuidado, para que não cheguemos aos extremos ditatoriais que "salvaram" povos da inflação com o esmigalhamento de seres humanos. A cautela maior deve ser contra o ego inchado dos governantes, parlamentares, acadêmicos. Com frequência é neles que a inflação recebe impulso, pois o dogmatismo os leva à cegueira política, uma loucura sem remédio.
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