O Brasil sofre investida inédita contra a laicidade do Estado, em favor da teologia política. Além de projetos que definem a família no sentido ortodoxo (descartando formas novas de vida familiar), surgem medidas apresentadas como conservadoras, mas que buscam sobretudo subverter a própria natureza do Estado. Qualquer cidadão que ande pelas salas de Comissões e corredores, na Câmara Federal, nota um atentado direto à Carta Magna. Músicas gospel tonitroam nas salas de comissões durante os intervalos de trabalho. Pastores e padres, com mandato ou sem, fazem cultos públicos no recinto que deveria ser neutro para defender toda a cidadania. Espíritas, umbandistas, budistas, ateus, todos pagam impostos, servem à pátria e lutam por ela. Não é lícito transformar a casa das leis comuns em templo desta ou daquela fé religiosa. A imprensa, os ministérios públicos e a justiça assistem silentes ao estupro cometido contra a Constituição, como se fossem normais as rezas nas Câmaras de Vereadores, Assembleias Legislativas, Parlamento Federal.
Gabriel Naudé tem boas notas sobre a religião no Estado moderno. Insisto naquele autor em meus artigos, porque ele é estratégico para quem deseja entender a lógica do governo, com os seus lícitos e ilícitos para controlar o povo. Naudé conheceu e diagnosticou os males da guerra confessional. As suas Considerações Políticas sobre os Golpes de Estado (1640) indicam a Noite de São Bartolomeu como remédio eficaz contra a divisão do povo em facções beligerantes. Se no Brasil de hoje aumentar a clara arrogância sectária, logo teremos sangrentas noites de São Bartolomeu. Pode ser que os atentados sejam cometidos por fundamentalistas protestantes ou católicos, mas a semente do ódio religioso já mostra horrendos brotos e ramos.
Naudé, na importante obra Bibliografia Política, comenta o uso, pelos poderosos, de crenças religiosas para legitimar o domínio. Por mais longe que nosso olhar alcance, sempre topamos com a crença dos povos em deuses "senhores e moderadores de todas as coisas". Como tais cultos são diversos, não raro conflitantes, "eles geram guerras e querelas mortais". Ele enumera vários livros que buscam entender o Islã, a religião judaica, o cristianismo sem os julgar uns melhores ou piores do que os demais. O conhecimento e a prudência devem regular o trato dos governos com os cultos e definir limites de respeito mútuo na vida civil. Como sempre, o pensador não foi ouvido e mortes aos milhares continuaram na França e na Europa, para desgraça das gentes.
Bancada evangélica ganha força inédita no Congresso
A ética, à diferença da moral, é sempre um comportamento coletivo. Os méritos e deméritos de ações éticas trazem benefícios e prejuízos para toda a sociedade que as assume e sanciona. Mas no interior de um coletivo convivem múltiplas éticas. Um indivíduo pode ser católico, protestante, ateu, mas se move numa profissão e nela é definida uma ética própria, distinta da religiosa. Médicos, engenheiros, esportistas, químicos, biólogos, cada atividade profissional se rege por valores e posturas diversas.
O próprio de um Estado democrático é o respeito de todas as éticas que vicejam na sociedade, sem privilégios. E, nele, deve ocorrer a punição severa de todas as éticas que prejudicam tal convívio. Caso oposto, temos o autoritarismo político ou confessional, ambos nocivos e causadores de inimizade na vida pública. O direito de todos é sagrado, senão cairemos no vicio de Etéocles, o traidor das promessas feitas, na tragédia de Eurípedes, As Fenícias (525). "Se algo merece ser violado, que seja o direito, porque a tirania é a causa mais bela/ Em todo o resto, obedeçamos os deuses". Não é possível obedecer os deuses destruindo seus filhos, os humanos. Tal é a verdadeira piedade em qualquer crença. O resto é obra demoníaca.
* Roberto Romano escreve quinzenalmente no caderno PrOA.
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