* Ruben George Oliven é Professor Titular de Antropologia da UFRGS e membro da Academia Brasileira de Ciências. Escreve mensalmente.
Quando se fala em culturas nacionais, sempre há uma preocupação com a autenticidade. Afinal, o que é genuíno em matéria de cultura? Todas as sociedades tomam traços culturais emprestados de outras e os incorporam como se fossem seus. Em um livro clássico, o antropólogo Ralph Linton, ao falar de um dia típico de um norte-americano, mostra que tudo que este considerava autenticamente americano na realidade viera de outros povos. Desde a cama, o lençol, o cobertor, o pijama, os mocassins, a roupa, os sapatos, o espelho, o guarda-chuva, os talheres e os pratos, o café, até o cigarro. Nada disso, porém, impedia que o cidadão se sentisse 100% norte-americano.
Nós, brasileiros, tomamos várias coisas emprestadas e emprestamos outras tantas ao mundo. Duas de nossas mais "autênticas" tradições culturais, o Carnaval e o futebol, foram criadas na Europa e trazidas para cá. Aqui elas se aclimataram e se transformaram em símbolos de identidade nacional. Os mesmos que nos tornaram conhecidos no Exterior como o país do Carnaval e o do futebol.
No nível ideológico, os militares e políticos brasileiros que proclamaram a República adotaram a filosofia positivista desenvolvida na França por Auguste Comte. O positivismo acabou se tornando mais forte no Brasil do que na Europa. De 1889 a 1930, o Rio Grande do Sul foi governando pelo Partido Republicano Rio-Grandense, que tinha no positivismo sua filosofia oficial. Porto Alegre, à semelhança do Rio de Janeiro, tem uma capela positivista. O Espiritismo também surgiu na França, mas se desenvolveu mais fortemente no Brasil, onde teve a adesão de parte da classe média e resultou na criação de vários centros e hospitais.
Se o Brasil toma expressões culturais emprestadas, ele também dá sua contribuição ao mundo com diferentes manifestações. A capoeira, que teve sua origem em uma dança de escravos africanos, virou arte marcial e é praticada em diferentes sociedades. Do mesmo modo, o jiu-jitsu surgiu no Japão no século 16 e chegou ao nosso país, onde foi aperfeiçoado. Hoje, o Brazilian Jiu-jitsu está espalhado pelo mundo. A Igreja Universal do Reino de Deus existe em cerca de 120 diferentes países. Nossas telenovelas são apreciadas em culturas muito diferentes da nossa, como, por exemplo, a China.
Nos anos 1940 e 1950, Carmen Miranda viveu nos Estados Unidos e se tornou a atriz mais bem paga de Hollywood, divulgando o "Brazilian way of life". De tanto sucesso que fez lá fora, passou a ser atacada por cantoras e críticos brasileiros que invejavam sua fama. Estes diziam que Carmen havia perdido sua "brasilidade", que estava americanizada. A acusação rendeu uma resposta deliciosa da "Pequena Notável", como era chamada, na canção Disseram que eu Voltei Americanizada. A Bossa Nova, surgida no final da década de 1950, incorporou elementos do jazz, ao mesmo tempo que o influenciou. E atualmente, bandas de rock como Sepultura fazem grande sucesso no Exterior com letras em inglês.
Em 1928, Oswald de Andrade, um dos expoentes da Semana Modernista, lançou o Manifesto Antropófago. O autor datou o documento como sendo o Ano 374 da Deglutição do Bispo Sardinha, numa referência ao prelado português que naufragou na costa do Brasil e foi devorado pelos indígenas em 1554. Nesse documento, Oswald argumenta que os brasileiros se dedicaram a essa prática desde o começo de sua história. Assim, nossa cultura seria caracterizada por saber ingerir e digerir criativamente o outro. A deglutição significa simultaneamente a destruição do que vem de fora e sua absorção e transformação em algo novo.
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Com frequência, argumenta-se que no Brasil muitas ideias estariam fora do lugar, pois vieram do exterior, onde a realidade é outra. Em verdade, aqui as ideias entram em um novo lugar, se aclimatam e se desenvolvem de forma extraordinária.