* Roberto Romano é professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp. Escreve quinzenalmente.
O Brasil, dizem alguns, tem instituições democráticas garantidas. Elas, repetem as mesmas vozes, funcionam em plena normalidade. Atrapalho o foguetório e afirmo que estamos longe da norma na ordem democrática. Basta pensar nos bilhões subtraídos dos cofres públicos. A Petrobras é uma empresa estatal a mais no rol dos roubos cometidos por lobistas e políticos. O dinheiro foi usado em campanhas políticas. As contas partidárias receberam aprovação da justiça eleitoral. O "normal" seria o controle rigoroso que não abençoasse números espúrios, marcas do submundo que Norberto Bobbio chama de "anti-Estado".
Se for lida a Constituição, ela manda ser o exercício dos cargos, nos três poderes, impessoal. Como aceitar que o presidente da Câmara dos Deputados "rompa pessoalmente" com o Executivo e ofenda o Judiciário? Fatos mostram à saciedade o quanto é anômalo o funcionamento de nossas estruturas políticas. Basta pensar nas esdrúxulas coalizões partidárias, nos apadrinhamentos para cargos "de confiança", na indignação de quem paga impostos, na ruína da fé pública. A normalidade alardeada indica que a prática desmente o idioma do encantamento publicitário, feito para enganar os incautos que ainda restam na vida pública.
Tais mentiras piedosas me fazem recordar uma história do século 17 mas atualíssima, dados os aproveitadores da crendice geral. A narrativa é de Gabriel Naudé, pensador importante sob Richelieu e Mazarino - cardeais astutos, verdadeiros ditadores truculentos e impiedosos -, homens que moldaram o Estado moderno. Naudé usa a religião, mas desconfia das batotas encenadas pelo clero para engambelar as massas. Com base na política religiosa, ele publica o clássico Considerações Políticas Sobre o Golpe de Estado (1640).
Diz ele que encontrou certo dia o padre Melchior Inchofer, jesuíta que escreveu o livro intitulado Veritas Vindicata ("A Verdade Defendida"). Vários panfletos da época traziam tal título, dada a discórdia na Igreja Católica e a guerra de religião que atingia a fé mística e a confiança pública, arruinando reputações de intelectuais.
Pois bem, o bom padre Inchofer defendia a veracidade de uma carta remetida diretamente pela Virgem Maria às pessoas da Sicília. Naudé apresentou ao padre razões pelas quais a missivista não poderia ser a mãe de Jesus. E ficou espantado (ou fingiu espanto) quando o autor declarou saber perfeitamente que se tratava de uma fraude. Mas escrevera assim mesmo o texto "para agradar e obedecer os superiores que lhe haviam mandado fazer tal coisa e, ademais, ele nada acreditava de tudo o que estava contido na referida carta". Medita Naudé : "Eis como se espalham no mundo os erros e os abusos; eis como os espíritos simples são enganados todos os dias". Quantos intelectuais de hoje, ao se tornarem militantes, escrevem ao modo do padre Melchior!
O nome completo do livro escrito por Maquiavel, perdão, pelo jesuíta, é o seguinte: Epistolae B. Virginis Mariae ad Messanenses Veritas Vindicata (Messina, J. Matarozii Ed., 1619). Outra informação valiosa: o padre embusteiro é membro da Comissão que examina o Diálogo Sobre os Dois Sistemas do Mundo, de Galileu. Ele justifica a condenação do pensador e de seu livro num opúsculo intitulado Tractatus Syllepticus (1633). Mentira em dose dupla, no caso da Virgem e da ciência. Numa instituição milenar que cometera tantas fraudes - a Doação de Constantino foi uma delas - o engodo a mais seria "normal".
Termino: as falas sobre a "normalidade institucional" no Brasil são tão verazes quanto a carta da Virgem aos sicilianos. Entre a fé pura e a mistificação, não raro, a distância é pequena. Cabe à prudência julgar e bem agir.
Leia mais textos de Roberto Romano