A pilha de 2,5 mil páginas que jazia na manhã desta quarta-feira sobre a mesa do Salão Nobre da prefeitura de Porto Alegre representava um desafogo. Após três anos de estudos e trâmites burocráticos, permeados por descrédito crescente da população e por protestos contrários ao empreendimento, o projeto de revitalização do Cais Mauá levantou a principal âncora que o travava. Com a entrega do Estudo de Impacto Ambiental e do Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima), caiu o maior empecilho técnico individual à obra - palavras da Cais Mauá do Brasil SA.
Conheça o projeto de revitalização do Cais Mauá
- É graças a esse volume de documentos que conseguiremos projetar uma nova etapa - disse o prefeito José Fortunati, em tom de alívio, ao discursar na cerimônia de entrega do material.
O calhamaço reúne detalhes que demonstram a complexidade da questão ambiental e explica parcialmente a demora. O tipo de iluminação do cais revitalizado, por exemplo, teve de ser mudado porque poderia causar desequilíbrio na natureza. A luz das lâmpadas previstas originalmente afetaria mosquitos que servem de alimento a um lagarto. Ao mudar o tipo de luz, a cor da tinta de algumas paredes também teve de ser alterada.
Em novo protesto, grupo projeta fundação em defesa do Cais Mauá
Leia todas as notícias sobre Porto Alegre
Até o final desta semana, o EIA-Rima deverá chegar à Secretaria Municipal do Meio Ambiente (Smam), onde ficará à disposição da população para consultas. A seguir, a Smam marcará a audiência pública para explicar o EIA-Rima. Apesar de haver ainda, somente na alçada do município, mais cinco fases depois da audiência pública (parecer final da Smam sobre o EIA-Rima, aprovação do projeto legal e do Estudo de Viabilidade Urbanística, emissão da Licença Prévia e emissão da Licença de Instalação), o presidente da NSG Capital (investidora do empreendimento), Luiz Eduardo Franco de Abreu, prevê o início da obra nos primeiros meses de 2016. Os trabalhos serão no setor dos armazéns. O custo somente desse trecho é de R$ 100 milhões. Serão derrubados o armazém A7, um antigo prédio do Centro Integrado de Comercialização Agrícola (Cicoa) e alguns anexos.
- Tem atrasos, mas três anos é um tempo até curto para esse projeto - argumentou Abreu.
Especulações e desconfiança
Imagem: Divulgação
Desde 2012, quando os espanhóis da GSS Holding buscaram um novo investidor - justamente a NSG Capital, do Rio de Janeiro -, a desconfiança imperava sobre o empreendimento. As especulações eram de que o grupo espanhol chegaria ao ponto de desistir do negócio. O clima teria afastado até empreendimentos comerciais com potencial de investir no cais. Conforme Abreu, a crise econômica na Espanha chamou o grupo estrangeiro de volta para cuidar de seus interesses naquele país. Foi preciso buscar alguém que injetasse investimentos no Brasil - e então surgiu a NSG. Ainda assim, a GSS continua como controladora do empreendimento, com 51% das ações - a NSG tem 39%, e os demais 10% são do Grupo Bertin.
O custo total da revitalização será de R$ 500 milhões - valor 100% privado -, e só a NSG deve investir R$ 300 milhões.
Mesmo com a entrega dos documentos, a desconfiança que contaminou até setores governamentais ainda não está vencida. Ao menos, não se fala mais em cancelar o contrato, como já foi cogitado dentro do governo do Estado.
No âmbito estadual, o acerto com a Cais Mauá do Brasil está sob análise devido a um pedido de aditivo para mudança de prazos e outros itens que só serão especificados depois que o grupo de trabalho formado pelo Piratini se reunir. O diretor-geral da Secretaria dos Transportes e Mobilidade do RS, Vanderlan Frank Carvalho, adiantou que foi aceito o pedido de suspensão do pagamento integral do arrendamento da área, de R$ 300 mil. O valor deveria começar a ser pago porque já passou o período de três anos, em que o montante seria menor, de R$ 30 mil.
Também há pendências federais. Para que sejam feitas as demolições que restam na área, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) terá de ser consultada.
Foto: Ronaldo Bernardi
Opositores querem o tombamento do local
O coletivo Cais Mauá de Todos, que se opõe ao projeto, promete se debruçar, nos próximos dias, sobre a papelada do EIA-Rima para vasculhar possíveis irregularidades ou pontos a serem contestados. Os comunicadores, sociólogos, arquitetos e urbanistas que compõem o grupo afirmam que, em uma área como aquela, os impactos ambientais são gritantes, o que suscitaria dúvidas sobre a aprovação das licenças.
- Estamos programando várias ações de sensibilização da população sobre o direito à memória, à identidade de uma cidade. Todo esse processo de revitalização foi decidido à revelia da participação popular, sem transparência - diz o porta-voz do coletivo, o sociólogo João Volino.
O grupo trabalha, atualmente, para articular, junto ao Ministério da Cultura, à Secretaria Geral da Presidência da República e ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o tombamento da paisagem do Cais Mauá.
- Porto Alegre nasceu ali - justifica Volino.
O presidente do departamento gaúcho do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), Tiago Holzmann, coloca o cais no mesmo patamar de outras áreas históricas da Capital, como Gasômetro, Mercado Público e Redenção.
- São marcas da nossa cidade que não podem ser desfiguradas. Representamos as pessoas que, em outros tempos, conseguiram fazer com que o Mercado Público não fosse demolido para virar estacionamento ou que o Gasômetro não desse espaço a mais uma pista de trânsito.
O IAB-RS critica a construção de um shopping center e de torres comerciais, previstas no projeto de revitalização do Cais Mauá, que estragariam a paisagem de maneira irreversível.
- O equívoco foi a prefeitura ter licitado a viabilidade econômica de um espaço público, e não um projeto urbanístico. Não prevalece a maneira como vai ficar, mas, sim, como aquilo vai gerar retorno econômico. Além de tudo, vai prejudicar a mobilidade urbana, que naquela região já é bastante congestionada - aponta Holzmann.
A NSG Capital, investidora do empreendimento, afirma que está disposta a dialogar com os grupos resistentes durante audiências públicas a serem realizadas na Câmara de Vereadores.
- Quem se opõe é porque não conhece o projeto. Se conhecerem, vão gostar - garante o presidente da empresa, Luiz Eduardo Abreu.
Confira o histórico do projeto:
* Zero Hora