Mesmo sem jamais se cruzarem nos corredores da Ufrgs, a enfermeira Denize Letícia Marcolino, 24 anos, moradora de Ronda Alta, no Norte do Estado, e a engenheira cartógrafa Taís Leite, 35 anos, do Bairro Vila Nova, em Porto Alegre, trilharam caminhos semelhantes na universidade. E, hoje, estão conectadas pelo desejo de melhorar as condições de vida dos que as cercam, após terem as próprias vidas transformadas na universidade mais tradicional do Estado.
Precursoras de uma realidade presente na Ufrgs desde 2008, Denize, ou Gónve (sabiá, em caingangue) é a primeira índia cotista a se formar na Ufrgs, em 2012, e Taís é a primeira cotista negra a receber o diploma em Engenharia Cartográfica. Até o segundo semestre de 2014, formaram-se na Ufrgs 1.231 cotistas: 168 autodeclarados negros, três indígenas e o restante, estudantes vindos de escolas públicas.
Na segunda reportagem sobre as ações afirmativas na Ufrgs, o Diário Gaúcho mostra histórias de quem, após a formatura, deu seguimento às transformações iniciadas ainda na universidade.
Mudanças de vida
Nas ruas de terra vermelha da Linha São Sebastião, em Constantina, no Norte do Estado, Denize se sente em casa. Caingangue, natural da Reserva do Guarita, em Tenente Portela, a jovem de pouca fala e longos cabelos pretos é, há quase dois anos, a enfermeira da unidade de saúde da aldeia.
Há oito anos, quando surgiu a oportunidade de candidatar-se a uma vaga na Ufrgs, Denize não imaginava que se tornaria responsável pela saúde de uma aldeia. Quando ingressou na única vaga de Enfermagem oferecida a um cotista indígena, em 2008, ela costumava se comunicar apenas em caingangue com a família e a comunidade onde nasceu.
- Falava português só na escola. Achei que não passaria porque não tinha estudado e eram mais de 20 candidatos para a vaga. Mas passei. O desafio começou ali - recorda.
Precursora
Naquele mesmo ano, Taís Leite, 35 anos, natural de Pelotas e moradora do Bairro Vila Nova, em Porto Alegre, filha de uma doméstica e de um pedreiro, não acreditava que passaria na primeira tentativa de ingressar na Ufrgs. Ao disputar uma vaga por meio das cotas, surpreendeu-se com o resultado.
- Eu sempre quis fazer uma faculdade, mas não teria condições de pagar para estudar. Sou a primeira da família a entrar na universidade. Ou seja, o desafio era dobrado: provar que podia entrar e mostrar aos meus pais que era possível ser uma aluna da Ufrgs - conta a engenheira, responsável pela produção de mapas numa empresa de consultoria ambiental.
Diploma ecoa na aldeia: Medicina da UFRGS forma a primeira cotista indígena
Caminhos difíceis
Passada a euforia do ingresso na universidade, Denize e Taís revelam as dificuldades enfrentadas para seguirem nos cursos. Por falar mais em caingangue do que em português, a indígena viu as notas despencarem no primeiro semestre.
- Tirava só notas 5 e 6. Não entendia o significado de algumas palavras. Mas isso me fez estudar ainda mais - recorda Denize.
Para Taís, os problemas se iniciaram com as disciplinas de exatas. Como concluíra o ensino médio técnico há quase uma década, ela perdera o ritmo em matemática.
- O processo de estudo é bem pesado. Mas até o primeiro lugar que entrou na Ufrgs teve dificuldades. Você tem que persistir e não desistir - ensina Taís.
"Minha filha é um motivo de orgulho para toda a família. Eu venho subindo com o incentivo dela: de doméstica, passei para auxiliar de limpeza, depois portaria, e, agora, sou vigilante."
Ana Cristina Soares Correa, mãe de Taís
Família e apoio
Durante a universidade, Denize se casou com Josias Loureiro de Mello, 27 anos, caingangue que se formará em Pedagogia na Ufrgs no próximo semestre. Formada, voltou para a aldeia, enquanto o marido ficou em Porto Alegre para continuar os estudos. Denize ainda incentivou a mãe, Ivone da Silva, que ainda mora no Guarita, a estudar Pedagogia à distância.
Taís já era casada com o técnico em eletrônica Felipe Rocha da Silva, 35 anos, quando passou na federal. O casal, inclusive, fez um pacto: Felipe manteria a casa para Taís concluir os estudos. Depois, ocorreria o contrário.
- Chegou a minha vez de incentivar o meu marido a prestar vestibular na Ufrgs para Engenharia de Controle e Automação. Nas nossas folgas, passamos os dias em quartos separados. Estou estudando para concursos, e ele, para a Ufrgs. Só nos encontramos na hora de dormir - diz, entusiasmada, Taís.
"Eu apoio, plenamente, o processo de cotas. Foi muito importante para a minha vida."
Taís Leite
A Revolução das Cotas
Os desafios dos ex-cotistas da Ufrgs depois da formatura
Na segunda reportagem da série, o Diário Gaúcho mostra as histórias daqueles que deixaram a universidade para melhorar as condições de vida dos que os cercam
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