* Ismael Caneppele é escritor e dramaturgo, autor de Os Famosos e os Duendes da Morte (2010). Escreve mensalmente.
Voltar a uma cidade onde se viveu durante muitos anos é sempre intenso. Cada esquina guarda um passado, um nós que poderíamos ainda ser, caso não tivéssemos partido. Gosto de voltar aos lugares onde vivi, sem qualquer aviso prévio. Pegar um avião sem haver ninguém esperando por mim. Caminhar pela cidade com a banalidade de quem vive nela. Volta e meia retorno. Para caminhar pelas ruas onde morei. Para sentar nos cafés onde morri. Para deitar na grama do parque observando a mesma árvore, o mesmo lago, um outro céu. Voltar é reconhecer o peso da mudança.
Desembarco em Congonhas com uma mochila nas costas e um telefone carregado de contatos. São Paulo é sempre casa, não importa o tempo que eu passe longe dela. Entro no táxi e peço que ele me deixe em qualquer ponto perto da Paulista. Servis, os motoristas da grande cidade não lidam bem com ordens imprecisas. Salto do carro já quase na Augusta e subo uma das muitas ladeiras do elegante bairro dos Jardins. Vitrines, preços e grades sempre chamam a atenção. E a quantidade de funcionários disponíveis para nada fazer. Há sempre um homem de braços cruzados fazendo nada na porta de um estabelecimento. Já quase na Alameda Santos, alguém grita o meu nome. Olho em volta e não vejo ninguém. Do outro lado da rua, dentro de um pequeno café, alguém faz sinais para mim. É ela. Nos abraçamos com a força dos amigos que não se veem há muito tempo. Talvez não faça tanto tempo assim, mas é como se fosse. Antes que eu possa olhar em volta, um garçom já espera que eu decida o que beber, o que comer, o quanto gastar.
Ela segura uma pesada xícara de chá entre os dedos finos e longos. Estranho o novo hábito. Ela diz não ser nada bom beber tanto café durante a gravidez. Pergunto de quantos meses é a gestação. Orgulhosa, revela estar grávida de 24 semanas. Estranho não haver barriga alguma. A blusa branca não aparenta qualquer sinal de haver dentro dela um bebê de seis meses. Sempre foi ortoréxica. Sempre teve pânico de engordar e sempre se alimentou corretamente, escondendo uma certa anorexia disfarçada de cuidado com a saúde. Agora, grávida, pretende engordar apenas o peso do bebê. Se recusa terminantemente a aceitar a gordura advinda da maternidade. Hoje, está pregoréxica.
Talvez ela não conheça esse estranho nome dado ao transtorno alimentar durante a gestação. Minha amiga é a gestante que dispensa a fila preferencial, como um orgulhoso aposentado. Para ela, é proibido ser gorda, mesmo estando grávida. Minha amiga saca o celular da bolsa e exibe a galeria de selfies. De biquíni em frente ao espelho, ostenta orgulhosa a não barriga de grávida. Sarada, seca, constantemente magra. Lembro desse fenômeno de grávidas sem barriga que prolifera na internet. Ela é uma dessas mães que carregam bebês invisíveis.
Se antes a competição entre as mamães fitness era ver quem voltaria ao peso original em tempo recorde, hoje a disputa é para ver quem consegue manter o mesmo peso durante toda a gravidez. Me preocupo com a saúde do feto, mas ela trata de afastar qualquer perigo. Altura uterina e líquido amniótico é tudo o que precisa para parir um bebê saudável. Os constantes ultrassons aos quais é submetida atestam estar tudo bem. Mesmo grávida, segue a dieta. Talvez estampe a capa de uma revista dedicada às mamães fitness. Será a vitória da magreza sobre o corpo mãe.
Nos despedimos antes que a tarde vire noite. Ela precisa voltar para casa. Precisa comer bem, não essas porcarias que vendem na rua. Chego na Paulista, sem saber muito bem aonde ir. Nem o que comer. Me pergunto qual será o preço de uma gravidez invisível. Se o bebê depende do olhar da mãe, como defende Winnicott, talvez os danos também sejam invisíveis. Talvez invisível seja o pior dos danos. Talvez não. O vento anuncia a chegada do frio. O fim das chuvas. A seca da Cantareira. São Paulo é uma cidade sem água. Penso na busca pelo poder e autocontrole que revela certos transtornos alimentares. Há uma ilusão de satisfação que cada sacrifício pode proporcionar. Não importa se grávida, a magreza será sempre a estética do poder.
Os faróis se fecham e todos atravessam a grande avenida. Entre as muitas magras que passam por mim, é possível que existam algumas grávidas. Já não saberia discernir quais são elas. A maternidade, assim como as dores, também pode ser invisível.
>>> Leia mais textos de Ismael Caneppele