*Cancionista e Professor da UFPel. Autor de Palavreio, Mandinho e Suíte Maria Bonita e Outras Veredas
Temos no Clube da Esquina um movimento de incrível densidade e diversidade que se fizeram presentes na produção desses mineiros que misturaram Beatles, Música Caipira, Tambores de Congada, Cantos Étnicos, Jazz, Nueva Trova Latino-americana, Polirritmia, Modalismo, Psicodelia, elementos progressivos, harmonias quartais, compassos compostos e andamentos alternados. São do Clube da Esquina as primeiras inovações estéticas de mixagem em estúdio no Brasil. Há originalidade nos arranjos e a valorização da linguagem instrumental com a presença de músicos como Wagner Tiso, Toninho Horta, Novelli, Robertinho Silva, Nelson Ângelo, Nivaldo Ornelas, Dori Caymmi, Luiz Eça, entre tantos outros. Mas é Minas Cancionista que se proclama no Clube da Esquina através de Milton Nascimento, Beto Guedes, Márcio e Lô Borges, Ronaldo Bastos e, sobretudo, Fernando Brant.
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Sabe-se que o nome "Clube da Esquina" é coisa do Lô Borges, mas foi Bituca, apelido de Milton, quem popularizou o termo ao tomar a iniciativa de batizar o disco e o movimento musical com este nome. Sendo figura central, idealizadora e emblemática, Milton Nascimento teve em Fernando Brant seu principal parceiro e letrista. A atuação do amigo Brant é tão decisiva na carreira de Milton quanto a de Milton para o Clube da Esquina. De Travessia (primeira parceria), passando pelas mais conhecidas Maria Maria, Nos Bailes da Vida, Encontros e Despedidas, Caxangá, Para Lennon e McCartney, Canção da América até as talvez menos citadas Raça e Ao Que Vai Nascer, a produção é intensa e imensa. Brant, no entanto, flertou e letrou canções de quase todos os integrantes do Clube e de seus vizinhos mais próximos: Tavinho Moura, Beto Guedes, Toninho Horta, Lô Borges, Wagner Tiso, Flávio Venturini, Nelson Ângelo, Joice... Suas canções foram interpretadas por Mercedes Sosa, León Gieco, Wayne Shorter, para citar artistas do exterior. Impossível listar ou mapear a produção de Fernando Brant sem cometer necessariamente falhas, injustiças ou esquecimentos.
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Cabe salientar a maestria com que Brant construiu suas letras, encaixando-as nas elaboradas melodias dos parceiros. Considerando-se a sofisticação musical plural e sem precedentes do Clube da Esquina -seus compassos alternados, trocas de andamentos, melodias contramétricas e sofisticação harmônica - a atuação de Brant parece confirmar meu palpite de que, quanto mais elaborada é a música, melhor é a letra. Neste caso, o letrista atua como uma espécie de tradutor da melodia destinada à voz humana. Só um letrista-músico consegue isto. Traduzir a subjetividade da melodia em objetividade de palavras. Eis uma certa magia, uma coisa que nos alerta. E alegra. Ao ouvirmos as canções letradas por Fernando Brant fica evidente sua plena consciência da forma canção. A maneira com que buscou a palavra justa para a melodia perfeita. O modo como preservou e respeitou trechos instrumentais e vocalizes, sempre primando pela comunicabilidade, mas valorizando a ousadia. A impressão é de que até mesmo os lererês de Milton não deixam de ser letra de Brant, que sabia - inclusive - o que não letrar.
No excelente livro Então, Foi Assim?, de Ruy Godinho, é Brant em pessoa que afirma: "Mais de noventa por cento das minhas parcerias eu faço a letra em cima da música." No mesmo trecho, Toninho Horta, coautor em Manuel, o Audaz, descreve: "O Brant é um cara tão inteligente que para cada parceiro ele escolhe uma determinada cor, atmosfera, para escrever as letras. Com Beto Guedes são canções de amor. No caso do Milton é a questão racial, social, política, mas também tem a coisa humana, a força, a juventude, a justiça... no meu caso, são as coisas do cotidiano." Haveria uma síntese melhor do que esta do Toninho para descrever o parceiro?
No artigo Nada Ficou como Antes, da Revista da USP, o professor e violeiro Ivan Vilela salienta a importância do Clube como um dos movimentos mais relevantes da história da música brasileira e destaca seu papel de síntese. Em certa altura, Vilela menciona o livro Tia Ciata e a Pequena África do Rio de Janeiro, de Roberto Moura, vinculando a estética do Clube da Esquina à negritude de matriz Nagô - etnia de negros escravizados deslocados predominantemente para Minas. Sabe-se que a Bahia e o Rio de Janeiro receberam escravos provenientes, em sua maioria, da matriz Ioruba. Gilberto Gil é Ioruba. Para Vilela, "é essa a África (Nagô) que vem com Milton". É outro pedaço de África que se revela no Clube.
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Tenho a impressão que boa parte do encantamento e da identificação dos gaúchos com o Clube tem a ver com esta oculta matriz Nagô, ou Banta, que nos une. Basta lembrar que a palavra milonga provém daí, bem como cerca de 5% de nosso idioma brasileiro. Nagô é a etnia que predomina nas congadas, nos maçambiques, nos quicumbis, nas manifestações de tambores robustos ao estilo Tambores de Minas. É banta a sonoridade grave do Sopapo e dos tambores do Candombe uruguaio. Sem falar no 6/8 que tanto amamos e nos unem à América Latina.
Lanço a hipótese de que foi esse mesmo encantamento e identificação que aproximou Elis Regina e Clube da Esquina. Em 1973, na iminência do surgimento do Clube, Elis declarou a Fernando Faro em pleno Ensaio: "Afinidade é um negócio incrível, eu tenho afinidade com o Gil, mas eu tenho muito mais afinidade com o Milton. Quer dizer, do Milton eu entendo tudo. O Milton nem precisa colocar letra numa música pra eu saber o que ele quis dizer. Eu tenho loucura pelo Milton." É esta louca afinidade que surge entre compositores, parceiros e intérpretes. Ouso afirmar, ainda, que Fernando Brant possivelmente tenha sido o compositor que melhor traduziu em palavras estas melodias que Elis dispensava para entender, mas fazia questão de cantar.