* Eduardo Wolf é professor e tradutor. Escreve mensalmente.
Em uma passagem de seu livro The Silence of Animals, o filósofo britânico John N. Gray analisa um dos momentos mais dramáticos e terríveis de 1984, a célebre e inclassificável obra de George Orwell. Winston Smith está sendo torturado por seu interrogador, O'Brien, que lhe mostra quatro dedos da mão e pergunta: "Quantos dedos tenho aqui, Winston?". Quatro, responde o torturado. O'Brien provoca-lhe: "E se o Partido disser que não são quatro, mas cinco?". A terrível sequência da tortura de Winston não conta com essa horripilante incursão pela aritmética do mundo totalitário por acaso. Winston havia escrito em seu diário que liberdade é poder dizer que dois mais dois são quatro. Em um regime totalitário, em que o passado é constantemente reescrito, o presente completamente falsificado e o futuro integralmente sequestrado pelo Partido, o apego à realidade, não a versões dela, o sentimento de concretude dos fatos tais quais eles são funcionam como garantidor da liberdade e da sanidade dos indivíduos. Na fina análise de John Gray, vemos por que exatamente O'Brien não pode aceitar que Winston, experimentando a dor crescente da tortura, diga "cinco, quatro, o que você quiser!". Não é a mentira que o Regime busca implementar; não é a mentira que o Partido quer oficializar; não é a mentira que o torturador quer obter do torturado: Winston precisa verdadeiramente ver cinco dedos onde só há quatro. Aniquilar nosso senso mais básico de realidade é a melhor forma de nos subjugar por completo.
Orwell já havia escrito sobre o tema em ensaio de 1942: "Se o Líder diz de um certo acontecimento 'Isto nunca aconteceu' - bem, nunca aconteceu. Se ele diz que dois mais dois são cinco - bem, dois mais dois são cinco". A frase sobre a aritmética do Führer é atribuída a Hermann Göring, mas John Gray aponta ainda outra fonte para Orwell, o livro Assignement in Utopia, de Eugene Lyons, sobre seu período na União Soviética. Que os dois exemplos máximos da experiência totalitária do século 20, nazismo e comunismo, fossem a fonte desse desprezo pela realidade, com o consequente desprezo pela humanidade, não é, de certo, coisa que nos espante. O que deveria nos espantar é que depois de todos os horrores dos regimes totalitários do século passado, exista gente de toda espécie disposta a ser uma espécie de Smith 2.0, pronto para entregar-se ao Regime, em oferecimento humilde e sincero ao Partido e à Ideologia. Smiths que dispensam O'Briens, Smiths da servidão doutrinária voluntária - em suma, Smiths que sempre que veem quatro dedos, prontamente respondem os cinco que deles exige a ideologia.
O radical ultraliberal do mercado que atribui a crise econômica de 2008 ao "intervencionismo estatal", o militante comunista que nega os assassinatos em massa cometidos em nome de sua causa, todos sacrificam a realidade no altar da Ideologia. A boa versão do ultraliberalismo não é a que causa crises, esta é apenas consequência da má aplicação da verdadeira ideologia ultraliberal. A correta aplicação da idelogia comunista jamais levaria aos horrores da União Soviética, pois a doutrina é perfeita.
Não pense o leitor que essa servidão às ideologias ou aos partidos é coisa de extremistas ensandecidos. Nesta semana, na maior democracia do mundo, um jovem branco, Dylan Roof, invadiu uma igreja em Charleston, Carolina do Sul, e matou nove negros. Contudo, apesar do manifesto racista divulgado pelo rapaz e de todas as provas factuais, lideranças da direita do Partido Republicano como o senador Rick Santorum (entre outros) atribuíram o crime a tudo, menos àquilo que efetivamente o motivou: o intolerável racismo que corrói a sociedade americana. A fidelidade ao credo partidário, doutrinário ou ideológico é mais forte que a realidade. O Partido não precisa torturar. Rick Santorum e seus iguais sacrificam a realidade de bom grado.
Não estamos melhor em casa. Depois de uma comitiva de senadores brasileiros ter sido vítima de uma armadilha diplomática da patética ditadura venezuelana, ajudando a desmascarar ainda mais a ausência de democracia naquele país, a reação dos "Smiths" da esquerda brasileira faria com que até mesmo o torturador O'Brien corasse. Enquanto a Venezuela afunda na truculência ditatorial, com presos políticos, judiciário controlado e imprensa censurada, o progressismo nacional mais uma vez bateu continência às ordens dos ditadores e dos torturadores e saiu em defesa da ditadura, não de suas vítimas. Da nota oficial do Partido dos Trabalhadores às declarações de jornalistas e intelectuais de esquerda, assistimos ao triunfo da aritmética de Maduro. 2 + 2 = 5. "O que quer que o partido sustente que é verdade, é verdade".
Nesses tempos de vil servilismo, o ceticismo de John Gray, desarmando esses discursos, vem bem a calhar. (John Gray é o conferencista do Fronteiras do Pensamento no próximo dia 8 de julho.)