
* Escritor
Com uma frequência cada vez mais reduzida, os filmes terminam como 20.000 Dias na Terra - documentário ficcional sobre um dia na vida do cantor Nick Cave -, ou seja, deixando o espectador inseguro quanto à natureza daquilo que assistiu. Em um mundo de certezas, até mesmo um comentário difuso como este já é capaz de produzir certa irritação nos leitores, quando não reclamações à editoria, pois o texto jornalístico deve ser direto, efetivo, claro. Creiam-me, eu gostaria que fosse esse o caso. Minto. Gostaria antes do contrário, que não fosse, porque só assim se pode ser fiel à experiência de assistir a 20.000 Dias na Terra: difusa, indireta, conturbada.
Enquanto recupero mentalmente as imagens que antecedem os créditos finais, a baía de Brighton, na Inglaterra, à noite, o píer iluminado e a figura do líder do Bad Seeds, que parece se despedir de uma câmera posta em um trêmulo barco, sigo me questionando sobre como classificar a obra. A ideia exposta nos materiais de divulgação é a de que presenciaremos o dia 20 mil na vida de Nick Cave, acompanhando-o da manhã à noite, como se fosse um documentário biográfico sequencial e realista, do despertar ao lado da mulher (a modelo Susie Bick) à atividade da escrita, de uma conversa reveladora com o psicanalista freudiano Darian Leader às gravações de estúdio de Push the Sky Away (2013), do almoço com o grande parceiro musical Warren Elis à pizza com os filhos à noite em frente à tevê, dos passeios de carro na companhia de figuras como Kylie Minogue a um grandioso concerto noturno que encerra o filme.
Tudo isso seria mais ou menos esperado não fosse ser o dia a que assistimos uma construção ficcional, erguida por uma fotografia e uma edição primorosas. O despertar de Cave é posado. As cenas em que está escrevendo com um belo terno são posadas, posada a conversa de dois dias inteiros resumidos em edição com o psicanalista (os dois não se conheciam antes das filmagens), as conversas com os amigos. Há ainda uma narração em off feita por Nick Cave que serve como ponto de costura, surgindo e desaparecendo, que acrescenta, por seu teor reflexivo e confessional, uma densidade metafísica às imagens, exigindo do espectador uma postura ativa, feito uma forma elevada de diálogo. Ou de provocação. O que leva à pergunta: a quem servem os diretores estreantes, o casal de artistas visuais Iain Forsyth e Jane Pollard, ao realismo ou à fantasia? Prefiro acreditar que aos dois, e ao mesmo tempo, e somente porque o fazem ao mesmo tempo é que alcançam produzir o efeito de verdade que encontramos aqui, uma verdade que só se mostra acessível a partir de uma construção sobre a realidade, construção semelhante à verdade da memória dentro de cada um de nós, uma verdade cumulativa e "distorcida", nas palavras de Cave, a verdade dos outros 19.999 dias que servem de abrigo para se chegar aos 20 mil. "Este dia é mais real ou menos real, mais verdadeiro ou menos verdadeiro, mais interessante ou menos interessante do que um dia em minha vida de fato, depende de como você o veja."
Então os que esperam um documentário ao estilo biografia para os fãs, com materiais raros e acervo pessoal, os grandes sucessos e depoimentos com o fim de enaltecer ou mesmo problematizar o artista, por certo sairão frustrados. Não verão a ascensão do jovem australiano, seus videoclipes e suas polêmicas, não saberão que viveu em São Paulo e foi casado com uma brasileira, nada disso. A escolha dos diretores e de Cave foi revelar o passado em fragmentos, nos objetos esquecidos, como um chiclete deixado por Nina Simone ao piano em um show que a banda abriu para a diva do jazz, uma das grandes histórias que Cave narra ao psicanalista e que por si só faz valer a hora e meia de duração do filme. Ou revelar a verdade quando as câmeras deixam de existir em sua percepção, como na fala de Kylie Minogue no carro: "Tenho medo de que me esqueçam e eu acabe sozinha".
Por fim, também não encontrarão aqui os sedentos de realidade aquela crueza que anda em moda nos documentários, como se a verdade desnudada fosse a forma de explicar os descaminhos do artista. (O novo documentário da HBO sobre Kurt Cobain mostra bem isso nas cenas domésticas entre ele e Courtney Love.) Até pode haver crueldade no que diz a voz em off de Nick Cave, mas por escutarmos sua própria voz, ela nos soa muitas vezes irônica, piedosa e quase terna. A transparência da verdade é muitas vezes apenas a transparência do mal, da desumanização. Por mais chamativa que seja a figura de Cave, o filme é antes e acima de tudo sobre estar na Terra sendo uma criatura humana, há 20 mil dias, lutando para compreender a experiência da vida e da criação a que estamos sujeitos, por encontrar um lugar em que as memórias que cada um de nós porta consigo - como um tesouro único - possam ser revertidas em experiências comunitárias e integradoras.
O que um ambicioso documentário artístico pode fazer.