* Professor titular de Ética e Filosofia Política da Unicamp. Estreia nesta semana e escreverá quinzenalmente no caderno PrOA
Amigos do Rio Grande, meus respeitos! Recebi a honra de escrever na Zero Hora em companhia de ilustres colegas e jornalistas. O nosso convívio, penso, pode ser destinado ao diálogo sobre questões éticas, estéticas e políticas. Escolhi para a primeira conversa um tema espinhoso.
Usamos sem cautelas a palavra "latino" para indicar quem vive abaixo do México. A recusa do apelativo, não raro, é punida com linchamentos ideológicos. Numa reunião acadêmica, fui proibido de questionar o fato e a palavra. E o evento era um "debate". Discordar, pouco a pouco, se transforma em sinônimo de crime. Mas pensemos o dogma.
O termo "América Latina" surge em 1856 com Francisco Bilbao e Torres Caicedo. Ele se amplia com o padre Lamennais e se vulgariza sob Napoleão III. Mesmo com Lamennais, teórico e suposto progressista - de fato um conservador desiludido - ele assume forma problemática. Para a política internacional da França, importa que os EUA não controlem o México. "Se", escreve o imperador ao General Forey em 1862, "o México mantiver sua independência e integridade territorial, e com ajuda da França um governo estável se estabelecer ali, podemos restaurar a força e o prestígio da raça latina no outro lado do Atlântico ( ) é nosso dever intervir no México com nossa bandeira". E mais: "estamos interessados em manter os EUA como poderosa república; não é interesse nosso que ele se aposse de todo o Golfo do México e governe as Índias Ocidentais e a América do Sul, controle toda a produção do Novo Mundo". Leia-se M. Rojas, Los Cien Nombres de America (1991).
O nome se reforça com a imposição sangrenta ao México de um governante estrangeiro, o patético Maximiliano de Habsburgo. A latinidade oficial nasce numa concorrência entre imperialismos. O mito legitima canhões e baionetas de Napoleão III, cujo alvo era garantir "mercado para nossas fábricas, matéria-prima para nossas manufaturas" na mesma carta ao general Forey).
O "latino" atribuído à nossa gente surge em conflitos políticos, econômicos, ideológicos e religiosos que envolviam a Europa, os EUA e as nações que conseguiram independência no século 19. A fórmula "América Latina" não denota uma cultura comum gerada no Latium via Espanha e Portugal. Ela traz o selo de uma invenção diplomática (mentirosa como toda razão de Estado) para definir o território de caça francês, contra a notória voracidade norte-americana de espaço. A propaganda gálica indica os protestantes do Norte como ateus presos ao mercado. Já a França seria espiritual. No fato, Paris quer a riqueza americana, jamais o diálogo com nosso espírito, demasiado primitivo segundo seus filósofos. Vicente Romero tem outra versão, plausível. A ela voltarei se preciso. As vítimas devem optar entre imperialismos: qual rapina é menor? Vencidos os franceses, nossa gente é estigmatizada como "latina". Nos EUA de hoje, o termo designa cidadania inferior.
O apelativo silencia que os indígenas e seus filhos são alheios à cultura de Cícero. Eles eram muitos antes dos europeus. Após o seu genocídio nos EUA, na América Central e do Sul, congregam povos que vincam a nossa fala e vida ética. Africanos nada possuem que os ligue à cultura "latina". Dela, recebem morte e dor. Os afrodescendentes não são "minoritários", pois só aqui eles contam 101.923.585 (IBGE). Se passamos aos alemães, ucranianos, poloneses, russos, japoneses, húngaros, holandeses, chineses, coreanos, sírios, libaneses, turcos e outras etnias, piora o equívoco do "latino". E o fato existe no continente inteiro. Analiso o tema na revista Art-Press (How "latin" is Latin America?). O termo "latino" não significa, de modo imediato, liberdade democrática. Em vez de retomar algo que nos prende às ideologias do século 19, importa pensar o Brasil como síntese dinâmica de múltiplas e diferentes culturas, política inclusive. Tensões entre elas ocorrem, mas todas entram na paleta de nosso povo sem nada dever aos pretensos donos, gálicos ou saxões, do mundo.