* Artista visual, professora do Instituto de Artes da UFRGS
Mesmo com o céu azul, o dia amanheceu menos colorido na segunda-feira, conforme mensagem da amiga Amélia Brandelli. Depois de quase cinco anos convivendo corajosamente com um câncer, e trabalhando como nunca,Claudia Barbisan faleceu aos 50 anos no último domingo, às 22h30min, no Hospital Ernesto Dorneles, em Porto Alegre.
Seus interesses artísticos foram múltiplos. Arte, para ela, era uma maneira de perceber a existência, de se entregar em cheio e se lambuzar de vida. Talvez sua ousadia se devesse à liberdade ímpar que tinha em misturar todas as práticas e criar uma linguagem só dela. A força que emanava de seu trabalho - seu mistério - vinha dessa liberdade como ato de resistência. Claudia não fazia concessões, não estava para brincadeira. Embora gostasse de brincar e de não se levar muito a sério, não teria atingido sua qualidade estética sem seriedade e autoexigência. Seus ex-alunos comentam que ela nunca lhes dava a nota máxima, pois achava que poderiam ainda melhorar, sempre, e isso os estimulava. Como professora, especialmente na ESPM, onde ficou por 11 anos e foi responsável pelo espaço de exposições, contribuiu na formação de profissionais reconhecidos, que têm demonstrado sua gratidão e carinho em mensagens na sua página no Facebook.
Claudia vinha de uma família ligada à arte. Ao receber o Prêmio Açorianos de Pintura, em 2009, agradeceu à avó paterna, Adelaide, pintora e professora, que a influenciou no gosto pelo desenho, praticado desde a infância. Mas não se deteve unicamente nas artes plásticas. Foi uma artista sui generis. Figura marcante na cena noturna da Porto Alegre dos anos 2000, anárquica e delicada, sempre procurou romper os limites dos comportamentos mais tradicionais. Trabalhou com cinema, vídeo, música, performance, sempre motivada pela vontade de experimentar.
Foi premiada com alguns vídeos coletivos e individuais, realizados entre 2004 e 2007. Na direção de arte do curta de animação Café Paris, de 2004, com direção de Ada Luz, já percebia-se o trabalho em pintura, colagem, cinema e vídeo interligados numa estética muito pessoal. O filme, postado no YouTube, mostra como ela soube ordenar cenários de Porto Alegre e grafites, que parecem resquícios do Fórum Social, ao ritmo da narrativa.
Nas várias bandas que formou, desde os anos 80 quando ainda cursava Psicologia, já era uma performer. Superativa e reconhecida no meio musical porto-alegrense, montou a Shes Ok, voltada para o rock, e a Shes So Fake, mais eletrônica. Participou da banda Os Replicantes e, mais recentemente, da Fenda Bikini, com música eletrônica para internet. Cantava, compunha, além de ter sido DJ e dançar com o carisma e a sensualidade de suas cores. Não conhecia teoria musical, mas cantava de ouvido, sem fazer esforço. Com sua voz doce e sua beleza esguia, parecia não se dar conta do efeito que provocava no palco, fazia o que lhe dava prazer, não se preocupava em agradar. E encantava.
A artista Claudia Barbisan
Foto: Reprodução
Mas foi na prática de ateliê que concentrou o último período de sua vida, realizando inúmeras exposições, a despeito das dificuldades de saúde. A pintura, desde sempre, com suas múltiplas ramificações, norteou a sensibilidade artística de Claudia Barbisan e estabeleceu uma conexão permanente entre suas múltiplas atividades. Suas cores replicam o vigor das performances como vocalista, e suas criações em cinema e vídeo transbordam a composição e o ritmo de sua pintura. Até sua maneira de vestir, de falar, de arrumar a casa ou o cabelo tinha a ver com seu trabalho. Claudia era feita de arte.
Sua coerência estética e ética eram indissociáveis. Talvez por não fazer concessões ou por ser indigesta a alguns, e apesar dos prêmios e do encantamento que provocava entre artistas e amantes da arte, sua pintura, surpreendentemente, não teve, até hoje, o reconhecimento que merece.
Embora conhecendo profundamente os meandros de seu ofício, com formação acadêmica e tendo sido professora universitária de História da Arte, Claudia colocava títulos dissonantes nos quadros, mas não gostava de muito palavreado sobre o que fazia. Não precisava. Pintava também de ouvido, com intuição e inteligência plástica privilegiadas. Misturando tinta a óleo com resina plástica ou recortes de revista, conseguia harmonizar cores e materiais antônimos. Desenhos, colagens e pinturas eram uma explosão de energia que dispensava palavras. Entretanto, seu trabalho - marcadamente abstrato - não era de fácil assimilação.
Nosso Estado tem a tradição figurativa arraigada. Dos paisagistas do início do século 20 aos artistas do Clube de Gravura, do Grupo de Bagé ou aos professores do Instituto de Artes, como Alice Soares e Ado Malagoli, a figuração prevaleceu. Mesmo Iberê Camargo, para quem Claudia chegou a posar, retomou o tratamento figurativo quando voltou a Porto Alegre. E como pintura só se pode apreciar ao vivo, fica difícil avaliar sem outros parâmetros. A fusão entre humor, rigor e ousadia do trabalho de Claudia Barbisan requer um olhar experimentado.
Se sua pintura transcende cores e formas, a personalidade de Claudia Barbisan, a despeito de si mesma, nunca passou batida. Em tempos de banalidades, seu trabalho nos faz acreditar na essência do artista e no ministério da pintura.