Fiquei menos de um ano com esta coluna na Zero Hora, o jornal cujo formato eu adoro. Como já falava de política no Valor Econômico, quando me convidaram aqui me propus a falar de comportamento - outro assunto que me fascina, porque põe a política a serviço da vida, subordinando a discussão do poder à da vida. Esta experiência se encerra hoje, convidado que fui pela presidenta Dilma Rousseff para assumir o ministério da Educação. Sentirei falta desta página.
Quero falar da miséria. No século 19, o Brasil era famoso pela escravatura. Darwin, o célebre Darwin, quando o navio em que está deixa o Brasil, diz que espera nunca mais pisar numa terra que tenha escravos. Aos poucos, vai se formando a ideia de que a escravidão corrompe a todos, inclusive e principalmente aos não escravos, aquela maioria de brancos dos quais muitos compram um cativo negro, ou para trabalhar em plantações, ou simplesmente para servi-los em casa, como o equivalente de empregados domésticos só que reduzidos a coisas, a propriedade.
Uma amiga no Facebook, Marcia Sofia Figueiredo, conta que trabalhou como empregada - antes de estudar e graças ao ProUni fazer universidade - numa casa que tinha, na sala de jantar, a reprodução de uma gravura de Debret com o título de "castigos domésticos". Os empregados serviam as refeições vendo como a família gostaria de tratá-los: com o chicote. Numa hipótese generosa, os patrões eram inconscientes. Na mais provável, eram sádicos. Em pleno século 21, sonhavam com empregados que fossem coisas, sem nenhum direito.
A miséria é o equivalente atual da escravatura. As duas são infames. Mas o importante é que a infâmia, a vergonha, deve ser não do miserável ou do escravo, mas de quem se cala sobre essa desonra à condição humana. Numa sociedade com escravos, o trabalho manual (e não só o manual) é desdenhado porque fica associado à condição servil. Quem trabalha de verdade é visto com chacota. A marca da liberdade é a preguiça, a indolência, a displicência. Ainda não sumiu de todo o sonho de ter uma sinecura, um emprego público que não exija o trabalho, a presença. Pensem quanto atraso econômico - além do estrago humano - isso causou em nosso país.
Numa sociedade em que há miséria, ela só perdura porque os mais prósperos de algum modo se mostram indiferentes a essa outra infâmia. Nas eras de escassez, talvez se explicasse haver pobreza e mesmo miséria. Talvez. Mas desde que as máquinas aumentaram vertiginosamente a produtividade, não há mais razão para escassez, para pobreza e menos ainda miséria. Se ela existe, é por descaso de quem não a vivencia. É porque falta um mínimo de compaixão, de solidariedade com quem está na miséria.
Em nosso tempo, é possível - economicamente - todos comerem, se vestirem, terem uma vida com dignidade. Quando não a têm, que vergonha. Mas a vergonha não é do humilhado, e sim de quem o coloca ou deixa nessa posição. Não pode mais haver miséria. Precisamos extingui-la.
* Professor titular de Ética e Filosofia na USP e atual Ministro da Educação. Escreveu quinzenalmente no caderno PrOA até deixar o espaço ao assumir o cargo.
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