Eric Nepomuceno não foi apenas o responsável por apresentar a obra do escritor uruguaio Eduardo Galeano ao Brasil - em 1974. Ao longo de quatro décadas, foi também um amigo próximo do autor, a quem chamava de "irmão mais velho".
Nepomuceno enviou por e-mail algumas linhas sobre seu amigo enquanto viajava para o funeral de Galeano, que morreu no último dia 13, aos 74 anos: "Respondi de um jorro só. Não vou reler. Deve ter erro de digitação, de concordância, do cacete. A vida é cheia de erros. Eduardo ter ido embora é dos maiores que a vida cometeu".
A memória mais antiga
"Nós nos conhecemos num anoitecer de março ou abril de 1973, em Buenos Aires, onde - em fevereiro daquele ano - eu tinha vindo parar. A primeira impressão, a memória mais antiga, era e é a de alguém impetuoso, mas ao mesmo tempo cuidadoso, com uma infinita fé na vida e na capacidade humana de refazer a história oficial, contar a história real. E com uma visão ampla, amplíssima, do mundo. E, enfim, uma pessoa com um humor, uma alegria de vida, capaz de desafiar qualquer horror. Mais tarde, isso se confirmou."
A popularidade junto aos jovens
"Eduardo, como autor, tem características muito fortes. É, era, é, dono de uma capacidade infinita de humanidade e de poesia em tudo que escreveu. E também uma infinita capacidade de revelar fatos. De descobrir, nas miudezas do cotidiano, a grandeza da vida. Lapidou, que nem ourives, cada frase que escreveu, principalmente a partir de um livro essencial, chamado Dias e Noites de Amor e de Guerra. Ali ele forjou seu estilo definitivo, que depois encontrou esplendores únicos na trilogia Memória do Fogo, que na minha opinião é, de longe, sua obra maior, e no Livro dos Abraços. Eduardo tinha um falar direto, belo, sem rodeios, e principalmente honesto - para não mencionar, claro, que era um falar excepcionalmente bem escrito. Os jovens são - alguns - sensíveis. E qualquer um que tenha um mínimo de sensibilidade se deixou arrebatar pelos escritos desse meu irmão."
Traduzir Galeano
"Há um detalhe curioso. De todos os autores, alguns grandes, imensos, que traduzi, Eduardo era o único a quem eu consultava. Primeiro, porque ele conhecia perfeitamente o nosso idioma. E, segundo, porque muito mais do que meu amigo da alma - e vários autores que traduzi e traduzo são meus irmãos da alma - ele era, de fato e de direito, embora não de sangue, meu irmão mais velho. Tenho lembranças intocáveis e intocadas de como trabalhávamos juntos, nas traduções. E tenho uma raiva danada da internet por causa disso. Lembro claramente de como revisamos, negociando cada linha, cada palavra, a tradução de Os Nascimentos, primeiro volume da trilogia Memória do Fogo. Foi num café da praça central de Coyoacán, na Cidade do México, a três quadras da minha casa. Nos aboletávamos numa mesa, tomávamos oceanos de café, fumávamos Himalaias de cigarros, e a cada tanto interrompíamos tudo para ver determinada moça passar. Era belíssima. Nunca soubemos seu nome, nunca falamos com ela. Mas a cada aparição cotidiana muitos nós da tradução se desfaziam. Eduardo dizia que deveríamos dar crédito à moça. Era assim que trabalhávamos, livros e livros. Depois veio a internet, e a moça, as moças, sumiu, sumiram."
A atuação política
"Eduardo jamais fez prosa militante, panfletária. Ele me ensinou que a gente é o que a gente escreve, e o que a gente escreve é o que a gente é. Uma coisa independe da outra. Se é para fazer um texto militante, político, de emergência, tudo bem. Mas a escrita, a literatura, é outra coisa. Claro que espelha, reflete, sua maneira de ver o mundo e a vida. Nisso, Eduardo foi de uma grandeza única. Não era, jamais foi, um escritor de certezas. Era, como aliás na vida, um escritor, um homem, de dúvidas. E assim, buscando perguntas, buscando caminho, nos guiou. Há quem se oponha a tudo aquilo em que ele acreditava, e acho isso normal e saudável. Viver é, também, divergir. O que irrita - a mim: a ele, não; ignorava - é quando ele é acusado por quem não tem a menor ideia do que somos, do que é esta nossa América, a nossa história, a nossa gente. Quando querem reduzir o que ele escreveu, e até ele mesmo, a clichês idiotas e mesquinhos. Sempre que divergiu de alguém ou de algo, e isso aconteceu um sem-fim de vezes, Eduardo soube ser contundente sem perder a linha da justiça e do respeito. E, curiosamente, quem diverge dele raras, raríssimas vezes age assim."
O legado para a América Latina
"Eduardo era um ser excepcionalmente rigoroso, principalmente com ele mesmo, com os amigos e com as coisas nas quais acreditava. Era crítico - extremamente crítico, a começar por ele - e leal. Quando discordava, dizia de frente, cara a cara. Acho que vários dos processos vividos por nossos países atualmente iam ao encontro do que ele dizia e acreditava. Não como projetos fechados: Eduardo não acreditava em projetos fechados. Acreditava em propostas que teriam, necessariamente, de ser adaptadas à realidade para, enfim e alguma vez, poder transformar essa realidade."
A perda do amigo
"Eu não enfrento. Eu tento. Eu sabia que meu irmão estava indo embora. Achei que estava preparado. E agora mesmo, na noite desta terça-feira, 15 de abril, véspera de ir a Montevidéu para o adeus derradeiro, a cerimônia de cremação, me pergunto, aqui em Buenos Aires, onde nos conhecemos e nos adotamos como irmãos, o que farei desse vazio imenso que terei pela frente. Eu estava preparado para a notícia da morte de Eduardo. E, definitivamente, não estava nem estou nem sei se algum dia estarei preparado para viver com essa ausência."