* Escritor e dramaturgo, autor de Só a Exaustão Traz a Verdade (2014). Escreve mensalmente no PrOA
Estou em Porto Alegre, onde recebo a visita de um amigo paulistano. Na beira do Guaíba, em frente ao Iberê, assimilamos a paisagem. Tento convencê-lo a entrar na Fundação, mas ele detesta o pintor gaúcho e acha o prédio arrogante com a cidade. A começar pelo café, cuja principal vista é ocupada pela parede dos banheiros, passando pelas salas de exposição sem isolamento, a falta de um ponto de ônibus nas proximidades, o trânsito, o preço do táxi para chegar até lá, a cobertura do prédio absurdamente desocupada, tudo enfim, para ele, no mais badalado museu contemporâneo abaixo do Mampituba, está equivocado. Paulistano, só para de reclamar quando o sol desaparece na linha do horizonte e o céu fica todo cor de rosa. Tenta fotografar, mas não há lente que dê conta de tanta beleza.
Veio ele até a capital gaúcha para salvar uma empresa que, em 2014, cresceu demais. Com faturamento recorde, também foi recorde a carga tributária. Meu amigo chegou na cidade um pouco antes das manifestações do dia 15 de março e se surpreendeu com a mobilização dos funcionários e da direção da empresa, confeccionando bandeirolas verde-amarelas exigindo o fim disso tudo o que aí está. Passou horas transformando uma empresa de sucesso em duas modestas microempresas. Demitiu funcionários para depois readmiti-los na empresa laranja. Deixou de pagar a porcentagem sobre o fundo referente à demissão, mas arrancou do Estado cada fundo de garantia, usado como prêmio para convencer o empregado a aceitar a demissão. Driblou impostos. Tudo supostamente dentro da lei. Supostamente. Nos horários de almoço, os mesmos gaúchos que driblavam o fisco, tentavam lhe convencer sobre a importância de ir à rua para pedir o fim desse governo corrupto, dessa presidenta incompetente e desse bando de ladrão que hoje manda no país. Patriotas, pareciam não perceber o paradoxo entre o discurso e a ação. Meu amigo preferiu ficar quieto e faturar a bolada que estava ganhando para amenizar o sofrimento da empresa milionária. No fim do trabalho, sentia-se pesado. Um pouco sonegador. Um pouco disso tudo o que está aí. O Guaíba refletia não a beleza do olhar, mas a sujeira de uma parte de si.
As noites quentes precisam ser aproveitadas, principalmente quando já é outono. A lua cheia nasce do lado oposto ao rio. Ao longe, a Usina do Gasômetro acende as luzes. Porto Alegre é uma cidade pequena. Uma península perdida no extremo sul do Brasil. Paulistano, meu amigo acha estranhas todas essas cidades que têm fim. São Paulo se perde na vista, parece nunca terminar. Não tem um Guaíba para definir onde ela acaba. Quanto a mim, prefiro saber onde tudo termina. Há um imperativo da natureza nas cidades delimitadas pela água. Rio de Janeiro, Recife, Belém, Porto Alegre, Buenos Aires, Montevideo... Há sempre uma fronteira líquida onde descansar os olhos. O Guaíba é um espelho dágua. No fim do dia, é sempre importante olhar para onde quase não existem homens. Um catamarã cruza a vista. Os grilos acordam os sapos. Um pequeno cardume de peixes salta pouco abaixo dos nossos pés.
Meu amigo pergunta como eu me sentiria se trabalhasse para uma empresa envolvida em um processo de investigação de sonegação. Pergunta se eu teria coragem de trabalhar para uma emissora cuja receita advenha da exploração religiosa, por exemplo. Respondo que não sei. Pergunta se eu escreveria para uma televisão que apoiou o golpe militar. Também não sei. Não demora muito, e cobra minha posição frente ao caso Zelotes. Sigo sem saber. São estranhos esses tempos onde quase todos são corruptos e tantos se revoltam contra a corrupção. No peito de muitos que marcharam contra tudo de errado que aí está, no dia 15 de março, a logomarca da CBF ostentada sobre o peito era a imagem clara da incoerência contemporânea.
Voltamos à Cidade Baixa pedalando pela ciclovia. O vento que soprava do rio tinha um certo cheiro de podre. Os carros congestionavam as vias. Os mendigos dormiam debaixo das marquises. Os bares acumulavam bebedores dessa cerveja feita de um milho geneticamente modificado. Em Brasília, Heinze e seu PP articulavam o fim à rotulagem de alimentos com ingredientes transgênicos. O CCJ dava mais um passo rumo à redução da maioridade penal. Pensei em escrever sobre tudo de errado que aí está. Tentei ter certeza sobre alguma coisa. É complicado ser cronista de um tempo como o agora.
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