É fácil encontrar marcas da presença armênia em São Paulo, onde se pode tomar a Linha Azul do metrô, que corta a cidade no sentido norte-sul, e descer na Estação Armênia, no bairro do Bom Retiro. Ou em Buenos Aires, onde se caminha pela Calle Armenia, no bairro de Almagro, e se dança tango na Asociación Cultural Armenia. Dos 10 milhões de almas que compõem o povo armênio, 7 milhões estão espalhados por cidades como Paris, Nova York, Montevidéu e La Paz, onde seus traços mais remotos, já hoje integrados à paisagem, datam do final do século 19. Apenas 3 milhões vivem na República da Armênia, que tem Erevan como capital e foi parte da antiga União Soviética de 1918 a 1990.
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Até o início do século passado, a demografia armênia era radicalmente distinta. A região de maior povoamento era a Anatólia, extensa planície no coração do Império Otomano, onde algumas estimativas indicam que a comunidade tenha chegado a 2,1 milhões de pessoas. No final da I Guerra Mundial, não havia mais de 400 mil armênios na região - uma população do tamanho de uma cidade brasileira de porte médio. Hoje, o número é ainda menor: cerca de 60 mil.
- Até o início da I Guerra, os armênios contribuíam para o desenvolvimento econômico, cultural e administrativo do Império. Na diplomacia, havia sete embaixadores armênios na Europa, entre eles o doutor Calouste Gulbenkian, que negociou em Paris as primeiras concessões de petróleo do Azerbaijão - afirma o embaixador aposentado Sérgio Tutikian.
O destino dos armênios da Anatólia é alvo de uma profunda controvérsia. Em cem anos, a polêmica extrapolou os auditórios dos colóquios de historiadores e ganhou templos, palcos, parlamentos e ruas. As evidências sobre o que ocorreu - testemunhos, documentos de arquivos oficiais, despachos diplomáticos, depoimentos de sobreviventes - deixam claro que, entre 1915 e 1918, mais de 1 milhão de armênios morreram em consequência de execuções sumárias, deportação em condições degradantes, marchas da morte, afogamentos em massa, fome e doenças. Mesmo em condições de guerra, seria difícil conceber uma operação de extermínio desse porte sem a intervenção consciente, ativa e dirigente do Estado - representado, nesse caso, pelas autoridades militares e civis otomanas. O caso armênio foi o primeiro, no século 20, em que um poder legítimo e com ampla capacidade de coerção agiu para eliminar um segmento da população da face da Terra. Trata-se do crime de genocídio, referido pela primeira vez em 1933 e tipificado em 1948 na legislação humanitária internacional.
Amplamente documentado, o genocídio armênio constitui um trauma para o Estado herdeiro dos otomanos, a República da Turquia, proclamada em 1923. Para a República da Armênia e a diáspora, representa um fio de comunhão. A maioria dos descendentes de armênios da Anatólia tem pouco em comum: nem religião, nem costumes, nem língua, nem escrita.
Une esses descendentes principalmente a lembrança do destino dos antepassados. Essa memória é sintetizada numa espécie de data nacional, o 24 de abril. Foi nesse dia, há exatos cem anos, na primavera de 1915 no Hemisfério Norte, que a elite política e intelectual armênia começou a ser trucidada em Istambul.
Passado um século, a negação do genocídio armênio deixou de ser uma simples operação de despiste e adquiriu contornos sofisticados. Os argumentos dos negacionistas pouco mudaram: o episódio não teria acontecido, a responsabilidade teria sido dos armênios (uma minoria nacionalista pegou em armas contra o Império), tudo foi parte da tragédia de uma guerra na qual morreram infinitamente mais turcos do que armênios e, finalmente, o termo "genocídio" é legalmente impróprio. Há 10 anos, o escritor turco Orhan Pamuk, futuro Nobel de Literatura, respondeu a processo em seu país por ter usado a expressão "genocídio" a propósito do caso armênio. Na segunda-feira, o primeiro-ministro turco, Ahmet Davutoglu, emitiu um comunicado de condolências aos netos de armênios "que perderam suas vidas na I Guerra". E acrescentou: "Reduzir tudo a uma única palavra (genocídio), afirmar a responsabilidade única da nação turca por meio de generalizações ou mesmo combinar isso com uma consciência de ódio é legalmente problemático".
- A questão armênia mostra como a história é poderosa. Na França, você não pode negar o genocídio armênio, há uma lei que proíbe isso. Na Turquia, é o contrário: você não pode reconhecê-lo. Isso mostra em que medida o passado não passa e a recusa em lidar com episódios sensíveis não permite uma healing, uma cura - afirma Monique Sochaczewski Goldfeld, coordenadora do MBA em Relações Internacionais da Fundação Getúlio Vargas - Rio.
Entre 1988 e 1994, verdade, memória, sofrimento e compaixão voltaram a se cruzar na história armênia com a guerra no enclave de Nagorno Karabakh, parte do território do Azerbaijão. O conflito eclodiu depois que a maioria étnica armênia local aprovou a unificação com a República da Armênia. Por dois anos, os exércitos das duas ex-repúblicas soviéticas travaram uma guerra sangrenta, que terminou com a independência de fato de Nagorno Karabakh e o deslocamento de 1 milhão de azeris.
OS MOTIVOS PARA O MASSACRE
Assim como outras minorias do Império Otomano (sérvios, gregos, búlgaros, albaneses, judeus e, finalmente, árabes), os armênios foram influenciados pelo nacionalismo europeu em ascensão no século 19. O que tornou o nacionalismo armênio particularmente ameaçador foi a posição influente da comunidade - à qual pertenciam comerciantes, banqueiros, diplomatas, intelectuais e ministros - e o fato de estar concentrada na Anatólia, região desenvolvida no centro do Império.
Com o início da I Guerra e os exércitos turco e russo lutando na Ásia, setores minoritários de nacionalistas armênios pegaram em armas contra o sultão, atendendo ao chamado do czar Nicolau II de que chegara a hora de sua "libertação". A maioria, no entanto, permaneceu leal ao Império Otomano. A decisão de eliminar os armênios obedeceu a razões políticas e militares. Homens, mulheres e crianças foram tirados de seus lares e executados - na forca, a tiros, queimados vivos, afogados no Mar Negro. Tiveram propriedades confiscadas. Muitos foram obrigados a marchar sem comida ou água pelo deserto da Síria em direção a campos de concentração. Os que serviam ao exército foram executados ou submetidos a trabalhos forçados até a morte.
UM SÉCULO DE CONTROVÉRSIA
Os fatos
Entre 1915 e 1918, os armênios da Anatólia - mais de 1 milhão de pessoas cuja presença na região datava de 3 mil anos - morreram como resultado de execuções, fome, doenças, frio e maus tratos. Os massacres começaram em 24 de abril de 1915, em Istambul, quando deputados e ex-ministros armênios foram presos. O episódio é considerado como o primeiro genocídio do século 20.
O que diz a República da Armênia
Em declaração publicada no site oficial de memória do genocídio, a Comissão Estatal de Coordenação de Eventos Dedicados ao 100º Aniversário do Genocídio Armênio "expressa o desejo unificado da Armênia e do povo armênio em alcançar reconhecimento mundial do Genocídio Armênio e eliminação das consequências do genocídio, preparando para esse fim um processo legal como ponto de partida de um processo para restaurar direitos e interesses legítimos individuais, comunitários e panarmênios".
O que diz a República da Turquia
Em declaração de 24 de abril do ano passado publicada no site da embaixada da Turquia em Brasília, o então primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan afirma que "é dever da humanidade reconhecer que os armênios, tal como qualquer outro cidadão do Império Otomano, recordam a dor sofrida" durante a I Guerra. E acrescenta: "No entanto, utilizar os acontecimentos de 1915 como desculpa para mostrar hostilidade para com a Turquia, tornando o assunto num conflito político, é algo inadmissível".